1968: A estreia da Mazda na alta-roda com um Cosmo 110S rotativo…
Apesar de há muito andar arredada do mundo dos ralis – a última incursão oficial remonta ao período 1989/91 – é já longa a história da Mazda nas provas de estrada do planeta, remontando a 1968, a dois anos do início do Campeonato Internacional de Ralis para Construtores e a cinco da primeira edição Campeonato do Mundo de Ralis (hoje WRC) a estreia oficial da marca de Hiroshima nestas lides.
E fê-la pela porta grande, pois a sua primeira experiência por terras europeias fez-se na superexigente e demolidora ‘Marathon de la Route’, numa edição de 1968 que se correu ao longo de 84 horas ininterruptas, tendo como palco o circuito alemão de Nürburgring, na sua versão XXXL de 28,291 metros, apanhando as secções Nord & Südschleife, no que também é conhecido como o temível “Inferno Verde”.
Ok… não é um verdadeiro rali, é mais uma prova de resistência em circuito, mas note-se que a jornada alemã é herdeira directa do outrora denominado ‘Liège-Rome-Liège Rally’, um exigente rali corrido durante vários dias, sem quaisquer paragens, sem ser para abastecer, reparar as viaturas e comer uma bucha, ao longo de mais de 4 500 quilómetros por países da Europa central e oriental, numa viagem de ida e volta que atravessava, entre outros, os Alpes Italianos e os seus épicos passos de Gavia, Vivione e Stelvio, este último composto por 75 curvas e cumprido… em tripla passagem!
Um grito que enlouquecia… as vacas!
Amigos dos verdadeiros desafios, daqueles que dão verdadeiramente luta, os responsáveis japoneses não o fizeram por menos: não só escolheram a nova e exigente jornada de Nürburgring para se estrearem no mundo das provas de resistência (e, para todos os efeitos, dos ralis), onde sabiam que iam estar presentes as armadas oficiais das principais marcas que, à altura dominavam os ralis europeus (Porsche, Lancia, BMC MG e BMW, entre outras), mas a cereja no topo do bolo seria a aposta automóvel: nada menos do que o seu novo coupé Cosmo Sport 110S, carro equipado com um revolucionário motor rotativo, evolução do conceito Wankel!
Para o efeito, dois Cosmo Sport 110S devidamente preparados foram despachados para a Alemanha num DC-8 da Japan Air Lines, acompanhados de um imponente stock de peças e de uma significativa comitiva, entre mecânicos, pessoal da equipa e responsáveis da marca, acreditando no potencial do seu novo coupé desportivo, e determinados em testarem um motor com assinatura própria, diferentes dos demais, naquele que era, à altura, o circuito mais infernal do planeta.
No capítulo mecânico, o modelo contava com uma versão de competição do bloco 10A, com duplo rotor, construído em alumínio e com alterações ao nível da admissão, num conjunto que garantia uma potência de 130 cavalos (mais 20 do que o original) às 7 000 rpm. Tirando isso, o chassis era um pouco mais comprido do que o original, para maior estabilidade, tinha travões mais eficazes, para as agruras das dezenas de diferentes curvas do circuito alemão, e uma entrada de ar na frente mais ampla, para melhorar a respiração e refrigeração. Uma particularidade: durante os testes prévios, realizados em Suzuka, o seu ruído era tão ensurdecedor que vários criadores de gado da região queixaram-se que as suas vacas deixaram de dar leite!
Uma corrida alucinante, premiada com um fantástico 4º lugar
Foi, assim, em pleno Verão europeu de 1968, entre os dias 20 e 24 de Agosto, que dois Mazda Cosmo Sport 110S se apresentaram frente aos os seus congéneres europeus. Um deles (nº 18) ficou entregue a uma tripla de pilotos da casa, os japoneses Nobuo Koga, Yoshimi Katayama, Masami Katakura, e o outro (nº 19) a uma formação belga composta por Leon “Eldé” Dernier, Yves Deprez e Jean-Pierre “Jipéa” Ackermans. A diferenciá-los apenas um pormenor: uma lista vermelha em redor do primeiro e outra amarela à volta do segundo.
Findas as tais alucinantes 84 horas de sangue, suor e lágrimas, onde se testou e comprovou a resistência e a fiabilidade do motor rotativo, os carros made in Hiroshima bateram-se quase de igual para igual com os seus pares. Mesmo ficando por alcançar o objectivo máximo, o 4º lugar obtido pelo Cosmo nº 18 quase que soube a vitória, pois à sua frente apenas ficaram os dois Porsche 911 oficiais e um Lancia Fulvia, também de fábrica, à época vistos como dois dos melhores desportivos do velho continente. Já o segundo carro, da tripla japonesa, ficou pelo caminho, na sequência de um aparatoso despiste, sem consequência para o piloto, quando seguia no 5º lugar.
Em termos desportivos, a prova teve o seu momento decisivo no derradeiro dia, quando o MG C da tripla Julien Vernaeve/Andrew Hedges/Tony Fall, em aproximação ao Porsche que estava no 1º lugar, entrou nas boxes. Já sem travões, ultrapassou os limites da zona onde devia ter parado, até acertando num oficial da prova. Sem que pudesse fazer marcha-atrás naquela zona – seria desclassificado se o fizesse – o MG teve de voltar à pista, fazer toda uma volta completa e só depois regressar para reparação, perdendo, com isso tudo, 17 voltas para os líderes.
Na frente ficaram os dois 911 E da Porsche AG, conduzidos por Herbert Linge/Dieter Glemser/Willi Kauhsen e Bernard Blank/Günther Steckkönig/Hans Schuller, que viriam a terminar quase a par, separados por uma das mais pequenas diferenças de sempre num rali: 0,8 segundos, após 356 voltas. OK… mais uma vez, não o é verdadeiramente, pelo menos segundo o conceito que hoje conhecemos.
No 3º lugar ficaria, a 8 voltas do vencedor, o Lancia Fulvia 1.3 HF dos italianos Sandro Munari e Raffaele Pinto e do sueco Harry Källström, aparecendo, com 4 voltas de atraso sobre estes o Cosmo Sport 110S, da Mazda.
Acrescente-se que dos 51 carros à partida destas demolidoras 84 horas de Nürburgring terminariam 26 equipas, sendo que apenas 14 não sofreram qualquer penalização. Entre os abandonos, constava o segundo Lancia Fulvia oficial, guiado por um tal de Stirling Moss, o Piloto-Cavalheiro que faleceu no passado dia 12 de Abril de 2020.
Quanto à Mazda, o seu motor rotativo e o deslumbrante Cosmo 110S deixaram, assim, bem vincada a sua marca, num esforço e numa conquista épica, que deu início à sua longa presença no automobilismo mundial, que mais tarde e de novo alcançaria novo patamar com vitória absoluta do conceito nas 24 Horas de Le Mans de 1991… mas isso fica para outra prosa…!
Fotos: Mazda