Fui à Estrela numa das que mais brilha
A viagem que não me canso de repetir, o destino que não me importo de revisitar e o carro que não quero deixar de reencontrar. Adoro a Serra a Estrela. Acho-a mais impressionante sem neve, pois sem o manto branco vestido, tudo se distingue melhor, a imensidão dos seus vales, a imponência dos seus rochedos e a sensualidade das curvas das suas estradas. Mas, obviamente, não gosto menos da Estrela quando está completamente coberta de neve. Gosto tanto ou mais, mas por razões diferentes. Essencialmente porque gosto do clima rigoroso que ali se faz sentir e do conforto e calor que uma casa ou hotel naquela paisagem nos proporciona. A lareira, o café quente nas mãos e uma janela de onde possa ver a neve cair até o branco preencher até o mais pequeno pedaço de serra, ao longe, ainda por pintar. É difícil imaginar melhor do que isto.
É díficil, mas não é impossível. Melhor do que o cenário que acima descrevi, e revivi, é chegar lá. O caminho, esse que não me canso de repetir, até ao sítio que adoro revisitar e, este ano, a bordo de um carro que quero continuar a conduzir, o Mazda MX-5. Uma receita simples, com provas dadas, sobre a qual já escrevi diversas vezes, mas sobre o qual fico sempre com a sensação de que as palavras que escrevo não transmitem na totalidade a pureza da sua condução e a sua grande capacidade em oferecer tanto com tão pouco. E em ano de centenário da Mazda, a poucos dias de recebermos um ano de 2021 que esperamos melhor a todos os níveis do que este que está a terminar, não consigo imaginar um automóvel que preferisse ter levado à Estrela no seu lugar. Gosto muito do MX-5 e algo me diz que vamos ter saudades dele.
Porquê? Porque uso o Spotify, mas adoro o meu gira-discos. Porque tenho um smartwatch, mas não deixo de preferir ponteiros no meu relógio. E no caso dos automóveis, a lógica, para mim, é a mesma. Não preciso de potência pesada e silenciosa que não posso e não sei usar. Mas posso acelerar a fundo ao subir a serra no rouco MX-5 sem com isso acordar a guarda, e a cidade, também. Porque os 132 cavalos chegam bem, mesmo que aos 1991 metros de altura, na Torre, sejam já só uns 100 porque 14 ficaram nas Penhas da Saúde e 18 apontaram a Manteigas no cruzamento do centro de limpeza de neve. Não importa. O que importa é puxar uma segunda e depois uma terceira, reduzir para segunda e repetir a dose até à próxima curva, sempre com som e resposta naturais de um motor atmosférico, incrivelmente recompensador de explorar.
Um carro que é ágil porque é leve e porque aquilo que efectivamente pesa está bem distribuído pelos eixos. Um carro que não é desconfortável porque não precisa de o ser, porque tem suspensão que mexe, que perdoa e cujo trabalho é complementado por borracha que forra as jantes e não as pinta, dando ainda mais margem de absorção e progressividade de movimentos, comunicando às mãos mais do que é habitual em alguns puros desportivos. Pneus que dobram e avisam quando vão ceder às forças a que os submetemos e uma suspensão que não mantém a carroçaria do MX-5 paralela ao solo mas que é capaz de manter, isso sim, as quatro rodas sempre no chão. A caixa de velocidades é outro destaque, talvez, apenas e só a melhor do mercado, pois pelo menos em automóveis até 50 mil euros, não me ocorre nada melhor em termos de precisão, robustez e rapidez.
O MX-5 foi espremido na subida, mas não perdeu o sorriso – aquela cara bem disposta de olhos rasgados que tão bem o define – ao chegar à Torre. Voltei a puxar por ele até ao Sabugueiro e quando o parei para mais umas fotografias, as únicas línguas penduradas que vi foram as dos cães que por ali andavam. Deslizei até Manteigas, sobrecarregando os travões, mas estes não se queixaram. Segui na direção do Covão da Ametade e depois de uma segunda, terceira, quarta, terceira, quarta, terceira, segunda, trava, segunda a fundo, terceira a fundo e quarta, para depois reduzir, parar no sinal de stop e recomeçar, nunca senti, da parte do MX-5, que este não estava a tirar tanto prazer daquilo como eu. Regressei ao cruzamento dos limpa-neves onde passei horas antes, voltei às Penhas da Saúde, apanhei os cavalos que tinha perdido à chegada e apontei-o a casa, ao som do “I can see clearly now” de Johnny Nash – outro nome que o “vinte vinte” levou – onde cheguei, 14 horas e 730 quilómetros depois, com uma média de 6,8 l/100 km, com pouca neve na memória, mas com a cabeça cheia delas.
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