… e se a Lancia e a Martini Racing regressassem ao WRC?
“Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida. / Que sempre que o homem sonha / o mundo pula e avança / como bola colorida / entre as mãos de uma criança.” Escrita em 1956, esta secção do poema “Pedra Filosofal” de António Gedeão bem que se pode aplicar ao presente, em particular ao universo dos ralis. Esse sonho passa, entre outros, não só pela necessária revitalização daquela que é categoria maior das provas de estrada, como também por quem disputa os respectivos títulos, pretendendo-se o envolvimento de mais construtores, para voltar a dar um brilho que o Mundial de Ralis (vulgo WRC) outrora teve e que teima em conseguir voltar a alcançar.
E quem é que não quer a Lancia de volta aos ralis? Até eu que, outrora fã absoluto da Audi, não parava de pensar como o Lancia 037, esse pequenino kart de estrada, conseguia, mesmo em determinadas condições mais adversas, suplantar o surpreendente Quattro, tantas vezes levando-me às lágrimas! Hoje, décadas depois dessas lutas titânicas no saudoso tempo dos Grupo B, vejo a coisa com outros olhos, ao mesmo tempo que volto a sonhar com um potencial regresso da marca italiana à mais alta roda dos ralis!
Serão 3 as razões que acho estarem subjacentes a essa tão desejada realidade: por um lado a falta que uma marca como a Lancia faz à modalidade, decorrente do seu hoje inigualável palmarés e pergaminhos; por outro o rejuvenescimento da marca italiana por inerência à sua recente integração no novo portento da indústria automóvel chamado Stellantis; e, finalmente, a eterna dedicação de todos os fãs que querem o regresso da Lancia ao WRC, saudável fanatismo que faz com que tenha sempre uma áurea de “eterna desejada”.
Entre esses fãs fervorosos da marca há um que se tem destacado, de há uns anos a esta parte, arquitecto de profissão e criador da comunidade “I Love Lancia”. Chama-se Andrea Bonamore e é o autor dos renderings que ilustram grande parte deste artigo, concebendo uma moderna reinterpretação “WRC” do Delta HF Integrale, com a particularidade de não esquecer a icónica decoração Martini Racing, o outrora departamento de competição desta empresa de bebidas (semi)espirituosas!
Aliás e curiosamente, a mais recente concepção de Bonamore para o potencial Delta HF Integrale para um futuro WRC assenta, desta feita na base vermelha de carroçaria, ao contrário dos seus anteriores renderings, na bem mais conhecida base branca com inconfundível tripla de cores da Martini Racing (vermelho, azul escuro e azul celeste).
A sua visão de 2021 recorda a decoração com que a Lancia Martini Racing inscreveu os seus Delta HF Integrale 16V no Rali de Sanremo de 1989, aquele que foi o rali de lançamento desta 3ª versão do Delta HF (sucessora do original 4WD e do subsequente Integrale 8V), sublimado com uma vitória de Massimo “Miki” Biasion / Tiziano Siviero, a contrapor a desistência por acidente de Didier Auriol / Bernard Occelli na segunda unidade.
Este foi, aliás, o único rali do Mundial em que se usou esta decoração vermelha, temática que só voltaria a ver-se em mais 2 eventos em que a equipa oficial participou, o Memorial Bettega de 1989 (encontro que Biasion também venceu) e o Critérium des Cévennes (Auriol desistiu com problemas de motor) desse mesmo ano. A razão era tão simples quanto isto: como a grande maioria dos jornais italianos da altura eram a preto e branco, o Delta vermelho não saia em destaque nas páginas dos ditos, algo que não era nada bom para as vendas do modelo. “Regresse-se ao branco e já no próximo”, clamaram os donos das marcas, em uníssono!
A palavra à Stellantis Motorsport…
Agora, entre o desejo e a realidade vai um enorme passo, sendo que parte significativa dessa potencial decisão caberá à Stellantis, o híper-grupo automóvel nascido no início do ano e que reuniu, sob um mesmo chapéu todas as marcas dos agora ex-Grupo PSA e ex-Grupo FCA.
Por um lado, consta que, depois de uma travessia do deserto, em que a marca quase se extinguiu em termos de mercado – apenas o Ypsilon se mantém vivo em alguns países, leia-se quase exclusivamente em Itália – a Lancia estará de regresso a um patamar de topo de gama que os seus pergaminhos já centenários decerto merecem, fazendo jus aos 115 anos que a marca fundada por Vincenzo Lancia completará a 27 de Novembro próximo.
Por outro, o WRC está a iniciar o processo de electro-evolução, sendo que rapidamente transitará da era híbrida que vigorará a partir de 2022, para uma subsequente era 100% eléctrica – sim, mercado oblige pelo que será inevitável, mais vale aceitar e passar à frente… doi menos – filosofia de electrificação gradual que a Stellantis está a abraçar avidamente, ambicionando tornar-se totalmente eléctrica a médio prazo! E como marketing oblige e muitas das suas marcas já visam outros campeonatos, a Lancia poderá voltar a assumir-se como a lança por excelência da Stellantis Motorsport na cena dos ralis do planeta.
Afinal, a Alfa Romeo está na Fórmula 1 com uma equipa própria, estando, em paralelo, envolvida, na preparação de um Giulia ETCR para a série eléctrica de carros de Grande Turismo, projecto a cargo da equipa Romeo Ferraris; a Citroën Racing aposta na competição-cliente dos ralis, com o C3 na sua nova/futura categoria Rally2, quer no WRC, como no Europeu e demais campeonatos de índole regional e nacional; a DS Automobiles dá cartas no Mundial de Fórmula E, com a TECHEETAH, categoria onde detém ambos os títulos de 2020 (Pilotos e Equipas); a Peugeot Sport prepara a entrada em grande, em 2022, na nova categoria “Hypercar” do FIA WEC, isto para além de apostar no 208 Rally4 para as fórmulas de promoção, de ralis e circuito; a Opel/Vauxhall Motorsport prepara duas versões do novo Corsa, apontando a um próximo futuro das modalidades de formação (vulgo troféus), com um Corsa Rally4 a combustão e um Corsa-e EV; a Maserati manter-se-á nas séries de circuito para gentleman drivers; falta saber o que farão a Abarth, Chrysler, Dodge, FIAT, JEEP e RAM, sendo que estas últimas têm um conceito mais offroad… estará o Dakar nos planos?
Ou seja, estes renderings que, quase a cada ano, Andrea Bonamore produz para deleite próprio e dos eternos sonhadores desse regresso da marca, poderão ver-se replicados num eventual futuro carro de ralis da Lancia, seja com base no multi-conquistador Delta ou noutro modelo que a marca italiana possa vir a ter no seu catálogo e que, para a Stellantis, tenha potencial promocional através dos ralis. Aliás, esse sonho do arquitecto italiano vai muito além da novel categoria principal, que em 2022 se passará a denominar ‘Rally1’, pois não só o Delta tem merecido a sua atenção nos últimos anos, como também até já pensou num Ypsilon HF R5 (futuramente ‘Rally2’) para o sub-escalão do Mundial de Ralis.
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… e ao departamento de marketing da Martini
A cereja no topo do bolo seria esse (desejado) regresso fazer-se sob as cores da também italiana Martini, recriando a inegavelmente icónica formação Lancia Martini Racing, o que colocaria um ponto final num hiato que dura desde o dia 19 de Novembro de 1991, quando pelas 17h00 (em Itália; 16h00 em Portugal) a bomba saiu para a imprensa, com o surpreendente anúncio formal do abandono da marca dos ralis, a nível oficial, entregando a representação no WRC, no ano seguinte, à estrutura do Jolly Club, que já tinha os seus próprios Delta HF com as cores da Totip, enquanto a Astra e a Grifone defenderiam a honra da marca italiana no Europeu de Ralis e no Campeonato Italiano. Já em 1993 as cores da Martini Racing deixavam de aparecer de vez, vendo-se a dupla conjugação italiana noutras realidades, mas de modo muito esporádico.
E mais? Há mais? Sim, há outras histórias, que lhe traremos numa futura edição da Garagem!
Fotos: Oficiais / Andrea Bonamore (I Love Lancia); Stellantis