O João que lê, o João que trabalha e o João ao volante de um Bibliomóvel Citroën
Portugal está, a partir desta semana, muito mais rico culturalmente! Não porque o respectivo ministério tenha – finalmente – aberto os cordões à bolsa, fazendo o que lhe compete no apoio aos múltiplos projectos existentes e/ou programados, mas porque ainda há uns quantos carolas que, por iniciativa própria e com suportes vindos daqui e dali, se lançam em aventuras culturais. Um deles é o protagonista da história que hoje aqui se conta, o escritor/jornalista João Ferreira de Oliveira, autor do projecto “VIAGEM ao INTERIOR dos livros, das pessoas e do país”.
Assenta na premissa de se levar as mais variadas obras aos habitantes das aldeias de um Portugal mais recôndito, aquele que poucos conhecemos em pormenor – a não ser que lá tenhamos ascendência – lugares por vezes até esquecidos pelo tempo e que no mapa ficam longe das grandes vias de comunicação. Com ele pretende-se proporcionar o acesso a obras e a histórias que lhes vão ser partilhadas e contadas, de viva voz, sublinhando um intercâmbio cultural com as gentes locais. Neste tempo estranho em que vivemos, a autor decidiu ser altura de “dar corpo a um projeto que junta duas das minhas paixões, a literatura infantil, área em que tenho obra publicada, e viajar, assim juntando o útil ao agradável”, antevendo um resultado altamente positivo.
Ciente de como a pandemia vincou as grandes diferenças entre as (tão poucas) regiões do nosso país, em que “o sol gira, sobretudo, à volta do litoral. É um círculo vicioso”, desta feita, a meta é a viagem em si mesma, sendo que todos os locais de paragem serão também de leitura e de oferta de livros, em especial às crianças: “O objetivo não passa por vender livros, mas sim oferecê-los. Regressar a casa com a carrinha vazia, mas repleta de histórias! Levo comigo cerca de 500 títulos, muitos doados por diversas editoras portuguesas e outros pela própria Citroën, uma das entidades que se associou a este projecto”, sublinha.
“Quero, também, tentar fazer um retrato do país neste período em que vivemos. Não pretendo substituir-me a ninguém, antes pelo contrário. Existem várias Bibliotecas Itinerantes no ativo, dinamizadas por Câmaras Municipais, com gente que faz todos os dias aquilo que eu farei durante apenas um mês. É também ao encontro dessas mesmas pessoas que pretendo ir. O João, autor, vai ler. O João Ferreira de Oliveira, jornalista, vai trabalhar”, acrescenta.
Citroën regressa ao futuro: Do icónico HY ao mais moderno Jumper
A primeira das quatro viagens programadas iniciou-se a 6 de Maio (5ª Feira passada), tendo o criador do projecto apontado o azimute à Aldeia de Figueira, localidade do concelho de Proença-a-Nova, antes de rumar às Aldeias das Sarzedas (Castelo Branco), de Cerdeira (Lousã), de Fajão (Pampilhosa da Serra) e de Janeiro de Cima (Fundão), onde chegará no dia 10.
São estes os destinos selecionados neste périplo denominado “Aldeias do Xisto”, o primeiro de 4 já programados, envolvendo a entrega de livros a quem deles necessita, diversas sessões de leitura ao ar livre, no centro das aldeias, em escolas ou em locais emblemáticos, numa partilha cultural bastante abrangente e bidireccional, para crianças e adultos que, por sua vez, contam as suas próprias histórias e experiências.
Integrando uma prática que se tem generalizado nos últimos anos, com a profusão dos Bibliomóveis, bibliotecas sobre rodas de âmbito particular ou, na sua grande maioria, da responsabilidade de diversas autarquias, que levam a cultura aos mais recônditos lugares deste nosso Portugal, a Citroën volta a associar-se ao conceito, tendo entregue ao promotor um furgão, para ser enchido com livros, para esta primeira “VIAGEM ao INTERIOR dos livros, das pessoas e do país”. É um regresso que se faz agora com um Jumper, herdeiro indirecto dos célebres Citroën HY que, em anos idos do século passado, serviam de frota às Bibliotecas Itinerantes originais da Fundação Calouste Gulbenkian.
Uma vez cumprido este programa, seguir-se-á a Rota da Terra Fria, a realizar na região de Trás-os-Montes (12 a 16 de maio), e mais duas viagens, aos interiores do Alentejo e do Algarve, em datas a anunciar. São quatro destinos distintos, mas com algo em comum: a troca cultural permitida por tudo o que os livros encerram, contando-se histórias. O acompanhamento das viagens pode ser feito na respectiva página de Instagram.
Bibliomóveis: Livros sobre rodas
Outrora património de entidades ou pessoas mais endinheiradas, as Bibliotecas Itinerantes (ou Bibliomóveis) têm vindo a surgir um pouco por todo o país, permitindo o acesso de muitos aos livros e às histórias que neles se contam, nomeadamente os que, por vicissitudes da vida, não suportam o custo associado ou, muito simplesmente, não encontram nas suas terras esses títulos, os mesmos que são bem mais comuns nas grandes urbes.
Foi a 18 de Março de 1911 que se publicou o primeiro Decreto-Lei que regulava os então chamados “Carros ou Barracas sobre Rodas”, evoluindo-se a uma baixa velocidade até ao surgimento do primeiro verdadeiro carro-biblioteca, nascido em Cascais em 1953, de uma ideia de António Branquinho da Fonseca, escritor e conservador/bibliotecário do Museu e Biblioteca Conde Castro de Guimarães. Circulando pelas escolas e outros pontos da multi-centenária vila, o sucesso do projecto foi tal que, cinco anos depois, a Fundação Calouste Gulbenkian, aqui através de Azeredo Perdigão, deu início a um serviço de bibliotecas móveis de âmbito nacional, adquirindo para o efeito um lote de 15 Citroën HY, frota que viria a crescer até às 47 unidades, levando a cultura e os sorrisos às zonas mais recônditas do nosso país.
Foi a chamada “lança em África” ou, neste caso, em terras de Portugal, numa daquelas fases mais dark da nossa história política recente, em que o analfabetismo e a iliteracia faziam as delícias de muitos dos que nos governavam, sob o argumento de que “era preferível manter o povo na ignorância pois dela decorria a modéstia, a paciência, e a resignação resultante da ignorância”. Felizmente que outros conseguiram impor outras filosofias de pensamento.
Hoje, quase 70 anos depois, o leque de bibliomóveis é algo que se tem multiplicado, com os mais recentes exemplares a surgirem em locais tão díspares do nosso país, como Alcanena, Almeirim, Arouca, Cascais, Gondomar Loulé, Lousã, Penacova, Proença-a-Nova, Terra Chã e Vila Real, ou até mesmo na ilha açoriana da Graciosa, entre muitos outros exemplares que, a seu modo e à sua dimensão permitem o enriquecimento dos portugueses. Se quiser acompanhar a evolução desta espécie, felizmente em vias de expansão, só terá que seguir o Facebook da Nave Voadora – Bibliotecas Itinerantes em Portugal.
Há muitas expressões relacionadas, sendo comum ouvir-se que “a leitura é o alimento da alma”, ou que “ler é sonhar pela mão de outrem”. Por essa razão deixo o repto: leiam, muito de preferência e, se possível, façam-no à boleia dos novos bibliomóveis!
Fotos: Oficiais / Citroën, Fundação Calouste Gulbenkian, Câmaras Municipais