Na Renault brinca-se com LEGO na hora de expediente
Ele há, de facto, empregos fantásticos! Em pleno Século XXI a abertura de determinadas empresas à criatividade e à diferença é tal que até deixam que alguns dos seus empregados mais valiosos passem o tempo a fazer construções em LEGO. Parece bom demais, não é? Pois, mas a coisa não é assim tão simplista quanto aparenta.
Se tem um modelo Renault, dos mais recentes, com a inovadora mecânica híbrida E-TECH, então parte dessa sua componente foi criada a partir de um projecto feito com recurso às deliciosas pecinhas da marca de brinquedos didáticos dinamarquesa! Isso mesmo, com o que os apreciadores do dito brinquedo didático encontram nos sets da mais evoluída colecção LEGO Technic.
Quando é sabido que a parte de pesquisa e desenvolvimento de um determinado projecto envolve vários milhares – por vezes milhões – de euros, a Renault poderá ter alcançado um dos mais baratos conceitos iniciais da história da marca, quem sabe da indústria automóvel! Ok ok… já se desenharam peças e até automóveis inteiros em guardanapos, em almoços de negócios, mas isso eram outros tempos. Hoje em dia e na generalidade dos casos, quase tudo é resultado de avançados e caros processos gerados em ambientes digitais, mas ainda há excepções… e ainda bem!
Quem conta esta invulgar história é Nicolas Fremau, especialista na arquitetura híbrida da marca francesa e um dos seus protagonistas. Tudo começou quando, em 2010, a Renault se lançou mais a sério na exploração da temática da electrificação, partindo em busca de uma tecnologia híbrida que permitisse proporcionar aos seus clientes uma suave transição rumo a todo um novo mundo que muitos querem tornar 100% eléctrico. Aos engenheiros e especialistas foi então pedido que apresentassem soluções que cumprissem com um exigente caderno de encargos: ser acessível, leve, adequado para veículos de todas as dimensões e com uma autonomia mínima de 50 quilómetros, ou seja, uma hibridização eficaz para todos.
Partindo do pressuposto de que o motor eléctrico seria o bloco principal, para fazer arrancar o veículo, Fremau questionou-se sobre qual a transmissão mais adequada para se usar entre esse bloco e o motor de combustão interna. Seguindo o conceito do “keep it simple, compact & light”, imaginou uma solução radical, em que se abdicaria da embraiagem e dos sincronizadores da caixa, recorrendo a uma embraiagem de escoras (no original dog cluch) solução que, entre outras, é usada no desporto motorizado, tecnologia que, no papel, tornaria o processo fazível.
“Quando vi o meu filho a brincar com peças de rodas dentadas da colecção LEGO Technic, disse para mim mesmo: ‘Bem, não está muito longe do que eu precisaria’, pelo que comprei o que precisava, peça a peça, de modo a ter todos os elementos necessários a essa montagem”, recorda, antecipando o que viriam a ser umas férias de Natal rodeadas de peças LEGO. Com elas criou um modelo à escala dessa inovadora transmissão de três velocidades que havia imaginado, pela primeira vez, apenas no papel. “Tive a ideia de fazer isto primeiro para me ajudar a perceber o que teria de fazer. Depois de cerca de vinte horas de ‘trabalho’ sob o olhar um tanto ou quanto surpreendido do meu filho, o modelo ganhou vida”, explica.
Não foi só um trabalho de encaixe das diferentes peças, já que, entre outras operações, houve que montar os diferentes eixos e anéis de transmissão, colá-los e perfurá-los para que coubessem num berço, avaliar todo o conjunto, num verdadeiro trabalho de engenharia que lhe permitiu testar “ao vivo” diferentes modos de operação possíveis com diferentes motores. Pelo caminho e para sua surpresa, descobriu “novas soluções de que não tinha pensado durante a sua análise teórica anterior, fortalecendo a minha convicção de que estava no caminho certo com este protótipo – sem dúvida o menos caro da história da Renault – numa tão surpreendente como inesperada inovadora solução técnica”.
Do conceito LEGO à realidade… em 18 meses!
Findo o processo criativo, seguiu-se a apresentação do conceito às hierarquias superiores, nomeadamente a Gérard Detourbet, o então Director do Projecto (entretanto falecido, em 2019), e a Rémi Bastien, Responsável de investigação, a quem eram muito familiares os conceitos de simplicidade e de baixo custo. Depois da surpresa inicial e de andarem à volta do modelo, tocando-lhe aqui e ali, ficou para a posteridade o comentário de Detourbet: “Se o conseguimos fazer em LEGO é porque vai funcionar!”
Passado esse primeiro teste, com outras aprovações entretanto alcançadas, foi-lhes imposto outro patamar – nestas coisas “não há bela sem senão”: a equipa teve de se comprometer de que conseguiria transformar o conceito em realidade em apenas 18 meses, “no que se revelou num verdadeiro desafio para todo o departamento de pesquisa de engenharia, com a mobilização das capacidades e potencialidades de todos os elementos”, recorda Nicolas Fremau.
Com o conceito a evoluir gradualmente e sem grandes entraves que atrasassem o processo, chegar-se-ia aos primeiros protótipos à escala real, integrando-se o novo conjunto mecânico no protótipo EOLAB, com que se validou o funcionamento do sistema E-TECH, até se cumprindo com alguns desafios governamentais, como o de uma viatura com um consumo inferior aos 2 litros aos 100 quilómetros.
Entretanto chegava-se, também, à decisão de qual o motor de combustão ideal para se juntar ao conjunto, o bloco aspirado de 4 cilindros “HR16” que, uma vez associado à transmissão de base LEGO idealizada por Nicolas Fremau e ao motor eléctrico, resultou no bloco E-TECH. Alcançando-se, entre outros, os pretendidos objectivos de simplificação e optimização de custos, bem como a redução de consumos e de emissões, essa assinatura está hoje em destaque nas gamas Clio, Captur e Arkana, em versões híbridas simples, e também nas mecânicas plug-in dos modelos Captur e Mégane, alastrando-se até à própria Fórmula 1!
Numa espécie de sonho tornado realidade, Nicolas Fremau resume assim a aventura: “Começámos com uma pequena semente, depois tivemos o departamento de engenharia a abraçar o conceito, que agora se vê transformado e integrado numa gama completa”.
Retomando as primeiras linhas desta prosa, há, de facto, empregos fantásticos, tornando-se ainda mais quando os resultados finais são assim tão positivos, mas muito em especial, quando se gosta do que se faz e se tem o devido reconhecimento por isso!
Fotos: Oficiais