Lancia Delta: Integrale de Riemann
Conheço este Delta Integrale há, pelo menos, 15 anos. Estudámos juntos, inclusivamente. Ou pouco estudámos, na verdade, porque este belíssimo italiano, propriedade de um amigo de longa data, era um de dois Integrale em que quase diariamente tinha o prazer de andar, quase sempre para deixar as aulas para trás, a caminho de uma qualquer esplanada, mesa de matraquilhos, Playstation ou bancada do Autódromo do Estoril. Os tempos eram outros, as preocupações muito menores e as “vistas” eram muito mais agradáveis num bar de uma faculdade de enfermagem do que no de um de uma de engenharia.
8 ou 16?
O Delta era quase sempre o eleito para nos levar até ao destino. O Pedro oferecia-se e nós fazíamos o sacrifício, tão grande nesses dias como agora. Encaixar-me no banco Recaro, baixar o vidro, braço na janela e deixar que o Twin Cam abrisse as goelas e a wastegate espirrasse para nosso constante delírio. O caminho variava e nem sempre era o mais curto ou mais rápido. Pela simples razão de que “se formos por ali”, há sempre aquela curva, recta sem semáforos ou rotunda de alcatrão manhoso em que a traseira acordava quando provocada, levando de seguida um golpe de volante que colocava as rodas da frente na saída que queríamos. A bordo, a risada era barulhenta.
O Delta Integrale foi o meio de transporte que o Pedro escolheu para a sua vida na cidade, entre passeios, saídas e idas para as aulas na faculdade. Achou bem fazê-lo em algo bem mais especial do que num utilitário seminovo e eu não podia estar mais de acordo com a sua escolha. Os seus “dias Integrale” dividiam-se entre conduzir este belíssimo HF Integrale com motor de 8 válvulas e um impressionante Deltona, Evo I, de cor amarela. Mais radical, mais rápido e eficaz, mas sem dúvida menos elegante. Olhando para o 8 válvulas, bem como para trás, no tempo, percebo cada vez melhor a decisão – incrivelmente difícil – sobre qual dos dois vender quando chegasse o dia. O Pedro decidiu bem, acreditem.
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Conduzir um carro assim é uma experiência que não voltaremos a ter
Mas para este trabalho proporcionou-se uma experiência diferente. Algo que, em tantos anos, só tinha feito uma vez: conduzir o Integrale. E se nessa estreia me senti algo assoberbado pela responsabilidade, desta vez fui obrigado – fui mesmo, pelo Pedro – a carregar no pedal do acelerador com um pouco mais de força e esquecer esses medos, até porque se há coisa que o Integrale já provou, contrariando muitas das desinformadas opiniões e uma igualmente injusta reputação, é que é uma máquina resistente. Sensível, se mal tratada, peculiar e exótica até, mas resistente e fiável se devidamente estimada e utilizada. Tantos anos depois, com milhares de quilómetros feitos nas voltinhas na cidade, bem como em várias viagens feitas entre Lisboa e Barcelona e vice-versa, o Delta está aí para as curvas e foi exactamente para aí que o levei.
A primeira sensação é a de que o imponente e largo Integrale parece encolher assim que nos sentamos ao volante – de aspecto racing, como manda “a lei”, de três raios – bem instalados nos bancos Recaro que, embora desportivos, não escondem uma certa elegância tão própria dos italianos. Não é por ser uma versão desportiva que a classe deve ser mandada fora pela janela. Jamais, e eu gosto disso. Outro ponto que salta imediatamente à vista é o icónico painel de instrumentos, onde predomina o amarelo, e o check panel, tão 80’s, tão Lancia. O motor dois litros Twin Cam acorda sem esforço e o som de escape – aqui mais livre, mais rouco – não esconde uma vontade imediata deste ser explorado, ainda para mais porque já vinha quente e preparado dos apertões prévios que levou para gravarmos umas passagens. Lancei-me à estrada, conduzindo calmamente, ambientando-me a tanta e tão recheada informação, uma riqueza de sensações que os carros novos, por muito bons que sejam, não conseguem proporcionar.
O som do motor, o peso dos comandos, as vibrações mecânicas, o próprio cheiro e calor proveniente da mecânica e, acima de tudo, a herança da combinação dos nomes Lancia, Delta e Integrale, contribuem, de uma forma incrivelmente cheia, para uma experiência de condução pura e intensa, explorável a vários níveis se assim o quisermos. Por isso, comecei devagar, adaptando-me à embraiagem, à precisão do selector da caixa de 5 velocidades, equipada com short shift, bem como à direcção, surpreendentemente precisa para um carro com 33 anos e 185 mil quilómetros no odómetro. Uma ligeira folga nos primeiros graus de rotação do volante dá lugar a um eixo dianteiro preciso que só alarga a sua trajectória se entrarmos demasiado depressa na curva, tal como me foi explicado. O segredo está em aproveitar a tracção integral, carregando, previamente, a frente com a dose certa de travões e entrando com a velocidade adequada para depois, aí sim, carregar a fundo e deixar a tracção integral, através dos diferencais, fazer a sua magia na saída.
De Integrale na Lagoa Azul
E que magia essa. Ganhei confiança e assumi a responsabilidade de seguir a motivação dada pelo meu co-piloto. Assim, logo após ter deixado para trás a estrada de calçada na Malveira da Serra que dá acesso à Estrada da Lagoa Azul, espremi duas ou três relações de caixa e rapidamente estava no gancho que nos leva ao cruzamento para a Peninha. Entrei a medo, claro, pois ao domingo de manhã as estradas da Serra são uma ciclovia disfarçada. A pouca velocidade com que entrei colocou o turbo fora da sua faixa de utilização, respondendo com atraso ao que lhe pedi via pedal da direita. Culpa minha, pois estou habituado ao binário instantâneo dos motores actuais e sem experiência com motores temperamentais e com entregas de potência de outros tempos. O Pedro avisou-me e logo de seguida veio a confirmação. O ponteiro das rotações demorou, mas rapidamente deu um pulo, convidando-me a esmagar a embraiagem e espetar a terceira vigorosamente. Assim o fiz e rapidamente cheguei à curva do cruzamento.
Não precisava de o voltar a fazer, mas não resisti. Reduzi novamente para segunda e reiniciei o processo. Agora com mais confiança, comecei a travar ligeiramente mais tarde e a tentar reduzir com ponta-tacão à mistura. Porquê? Não sei. Mas um Delta Integrale na Lagoa Azul pareceu-me bem. Nem quero saber se o fiz bem e se foi útil. Mas sorri, suei das mãos e ainda a meio da curva já pensava na próxima. Insisti um pouco mais e com a mesma rapidez decidi abrandar. Por respeito à máquina, ao Pedro e a quem por ali andava. Gosto de acelerar, mas gosto que corra bem. Agora que já o tinha sentido na pele, a responsabilidade voltou a falar mais alto. E a verdade é que estava tudo confirmado. O que me foi dito e o que sempre senti a partir do banco do pendura. Com o toque especial que a mecânica levou, os 185 cavalos são agora “200 e picos” e garantidamente não precisa de mais. Tal como as pessoas, aqui importa, sim, a riqueza de carácter, algo que a mecânica deste Lancia tem para dar e vender. Não seria difícil colocá-lo a andar mais, mas seria difícil usufruir da performance extra, perdendo-se o gozo de manter o motor no regime certo, explorando-o até onde tem pulmão e, como referi, antecipando as travagens para melhor se usufruir da capacidade de tracção à saída das curvas.
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Ao nível da suspensão, os amortecedores mais rijos e as molas mais curtas fazem o resto da magia. Sem exageros na sua dureza, o “TE” mantém-se utilizável no dia-a-dia, sem excessiva rigidez, mas não escondendo a sua preferência por tapetes de alcatrão mais regulares. Em curva, e fazendo a associação aos tempos modernos, lembrou-me um pouco o Mazda MX-5 1.5, cujo saudável adornar de carroçaria é um excelente complemento à informação que nos chega às mãos via volante, comunicando-nos o que se passa lá em baixo, com progressividade e sem reacções bruscas. No entanto, aliviando-se o acelerador a meio de uma curva, o Integrale transforma-se num típico “tudo à frente”, em que a deslocação de massas e atrito mecânico da elaborada transmissão aliviam a traseira, conferindo ajustabilidade ao chassis e ainda mais sorrisos ao condutor. E essa é a maior recompensa de recordar o que é conduzir um automóvel clássico, sorrir, mais ainda quando esse clássico é algo tão especial como um Lancia Delta Integrale, cuja dupla personalidade, desportiva e elegante, é simplesmente irresistível.
Seja pela marca Lancia, pelo modelo Delta ou pela versão Integrale, este é um carro icónico, de um tremendo sucesso desportivo, sobre o qual tudo já foi dito. Já nem vou por aí. Mas para mim, é um nome que tem um significado muito mais especial, pois foi, e é, mais um amigo de um grupo que, mesmo à distância, é inseparável. É o Integrale do Pedro, mas foi, igualmente, o meu Integrale, o do André, o do Nuno, o do Tiago e o dos outros dois “Joões”, quer do mais tranquilo, quer do mais acelerado. Não tenho saudades nenhumas das aulas de Análise Matemática, mas tenho saudades desses tempos em que deixávamos os livros para trás e íamos de Delta dar uso aos seus diferenciais, um plano bem mais agradável do que resolver equações com o mesmo nome. O Riemann que me desculpe, mas no mundo da engenharia, este é o único Integrale que me interessa.
Vídeo: Fábio Lopes
Imagens oficiais: Centro Storico FIAT