Austin Allegro 1500 Super – O incontrolável poder do “word of mouth”
Não perdi um episódio do Top Gear dos últimos 20 anos. Sou um fã assumido do programa, mas há que separar os factos daquilo que é, puramente, entretenimento. Passar a ideia de que um determinado automóvel é o “best car in the world” ou o “worst car ever made” é, quase sempre, isso mesmo, entretenimento, mas deve ser, igualmente, bem sustentada. São afirmações demasiado fortes para serem consideradas sérias e cujo objectivo é divertir fanáticos de automóveis como eu, para consumir essa informação e para com ela ser, lá está, entretido.
Sai ADO16, entra ADO67
Um dos modelos que mais sofreu com este, por vezes, doloroso entretenimento, foi o Austin Allegro. É verdade que está longe de ser um carro isento de falhas, mas está ainda mais longe de ser pior carro de sempre. E não o digo por ter uma ligação especial com o modelo, tal como descrevi num artigo recentemente publicado, mas porque efectivamente não o é. E agora que tive a oportunidade de conduzir um, acho que já estou numa posição mais confortável para tentar reconstruir um pouco da sua imagem, há muitos anos injustamente denegrida por um discurso divertido, mas pouco suportado por factos, quase sempre tendo por base o poder do passa-palavra e com raros argumentos associados que lhe tragam sustentação.
O Allegro surgiu no mercado em 1973 como substituto do muito bem-sucedido 1100/1300, modelo conhecido internamente como ADO16 e que foi comercializado sob as marcas Austin, Morris, MG, Wolseley e Riley, o chamado “badge engineering” no seu melhor. O novo ADO67 tinha por isso uma missão de grande responsabilidade, a de substituir um nome de sucesso que, apesar da idade do projecto, ainda apelava aos clientes do segmento, pelo menos no mercado britânico. O futuro do Allegro não se adivinhava fácil, e não foi, muito menos quando, logo na fase embrionária do seu desenvolvimento, começaram a ser feitas alterações ao projecto inicial, quase sempre motivadas pela redução de custos, bem como por decisões superiores que forçaram a utilização de componentes já existentes.
Fiel ao design original, mas só até onde o dinheiro deixou ir
Esteticamente, o produto final pouco ou nada tem a ver com as linhas idealizadas por Harris Mann, e segundo consta, o designer do Allegro – igualmente responsável por modelos como o Triumph TR7 e o Austin Princess – admitiu não estar nada agradado com o visual do automóvel que viria eventualmente a ser comercializado. Também eu reconheço que olhando para alguns dos esboços do Allegro, o resultado final podia ser bem mais emocionante, mas também é verdade que o objectivo não era produzir um veículo excessivamente dinâmico e desportivo. Por isso, gosto da proporcionalidade – ou para alguns, da falta dela – do Allegro, do facto do pára-brisas não ser tão inclinado como era para ser e assim resultar num tejadilho mais alto, bem como de ter uma traseira, talvez, antiquada, um falso hatchback ao estilo do Alfasud. Aos meus olhos, o Allegro é, sem dúvida, um mal-amado com alguns problemas de crescimento que afectaram a sua reputação, isso é certo, mas tem carácter e tem personalidade. Goste-se ou não, o Allegro não se parece com outro carro qualquer.
E algo que há muito ansiava, era por as mãos num Allegro, uma vez que nele apenas fui passageiro, entre 1985 e 1991. Foi, na verdade, o primeiro automóvel em que alguma vez me sentei, de fralda, imagino, o Allegro 3 de 1980 do meu Avô. Trinta anos depois, finalmente, sentei-me ao volante e conduzi um Allegro, uma unidade da primeira série, com matrícula de 1975. Este “DS-20-26” é um 1500 Super, estando por isso equipado com o motor E-Series, com 1485 cc de cilindrada, árvore de cames à cabeça e um carburador SU para uma potência a rondar os 70 cavalos. A convite do seu dono, fomos acordá-lo da sua hibernação pandémica e levá-lo a passear para lhe tirar o pó e secar as humidades. Com pouco mais do que uma chave de parafusos e uma de bocas, à boa moda antiga, retirou-se o filtro de ar e disparou-se um pouco de spray de travões para a admissão. Insistimos com motor de arranque e o motor de quatro cilindros acordou e fez-se ouvir, e de que maneira, dentro da garagem.
Tempo de o levar para a estrada
Este é o momento de ficar a conhecer, verdadeiramente, o Allegro. E já ao volante, começo mesmo por aí, pelo seu volante que não é um círculo perfeito, mas um quadrado de cantos arredondados, com o objectivo de ajudar o condutor a passar os joelhos por baixo e a facilitar a aderência das mãos ao aro. Ainda na fase de pré-produção, esta foi uma característica amplamente criticada pela imprensa especializada, mas à boa maneira da British Leyland, “siga”. E, digo eu, ainda bem. Não me parece que facilite em nada, nem no acesso, nem na sua utilização, mas prejudica? Nada. Aliás, nem pensei no seu formato mais quadrado enquanto o conduzia. No entanto, ainda recentemente a Aston Martin fez o mesmo num dos seus modelos e não só não vi tantas críticas negativas, como o volante está longe de ser o maior problema estético daquele habitáculo. Já o Allegro, viria, mais tarde, a perder este original volante, felizmente presente neste Super de combinação feliz, amarelo com tejadilho em vinil. Tão bom.
Para um automóvel a aproximar-se dos 50 anos, achei a posição de condução estranhamente actual. Foi bastante fácil ambientar-me à condução e apenas senti falta do retrovisor do lado do pendura. Outros tempos, outras prioridades. Debaixo do capot, o Allegro foi apenas mais um dos modelos ingleses que recorreu ao mítico motor A-Series, mundialmente famoso pela sua presença no eterno Mini de Issigonis, mas contou igualmente com os préstimos deste maior E-Series. E a maior cilindrada faz-se sentir na boa disponibilidade nos baixos regimes, rolando bem a baixa rotação e contando, inclusivamente, com uma caixa com 5 velocidades, fazendo deste Allegro um excelente estradista. A transmissão terá, certamente, algum desgaste acumulado nos últimos 46 anos, mas não andei, em momento algum, perdido à procura de uma mudança para engrenar, permitindo passagens suaves e descontraídas, sem aquela pausa do típico pensamento: será que está engrenada? A suspensão Hydragas, neste bem nivelado Allegro, já foi alvo de restauro e trabalhou bem para manter um bom conforto a bordo durante este breve, mas há muito desejado passeio.
Sem dúvida alguma, o Allegro não é o pior de sempre
Se acreditarmos em tudo o que nos dizem, na televisão, nos livros e revistas, no mais recente mundo virtual onde abunda a informação, bem como a desinformação, há relatos de rodas que saltaram fora devido a problemas nos rolamentos e de vidros que se partiam quando os carros eram levantados por um macaco. Não duvido que alguns destes episódios sejam verdade, duvido, isso sim, da quantidade de episódios que aconteceram realmente. Mas o mal estava feito, internamente, por más decisões, e amplificado, mais tarde, por uma comunicação social que tudo fez pelas audiências, prejudicando uma imagem já de si sensível e convidando, como disse antes, ao pouco sustentado passa-palavra que rapidamente coroou o Allegro como um dos piores de sempre. Se não acreditei nisso na altura, então agora não tenho quaisquer dúvidas de que era puro entretenimento. Conduzir um automóvel como o “meu” há muito estimado Allegro, com todos os possíveis defeitos e peculiaridades de um modelo lançado em 1973 é, sem dúvida, entretenimento ainda melhor. Vamos ter saudades de um dos “piores de sempre”. Eu já tenho.