Os ‘Safety Cars’ da F1: Histórias dentro da História
Polémico por vezes, imprescindível na maioria dos casos, o ‘Safety Car’ tem vindo a escrever a sua própria história dentro dos anais da Fórmula 1. O primeiro registo remonta a 1973, uma atrapalhada estreia que quase pôs em causa o título desse ano, seguindo-se, com intervalos mais ou menos alargados, outras aparições esporádicas, entre modelos desportivos e carros do nosso dia-a-dia. A partir de 1996 tornou-se presença habitual e obrigatória nos GP espalhados pelo planeta, muito por culpa de um contrato assinado entre a FIA e a Mercedes-AMG, entretanto alargado à Aston Martin na época passada.
As regras para a sua activação têm vindo a ser afinadas à medida que a F1 também evolui, a última das quais implementada já na presente temporada, após um problema desportivo criado no GP de Abu Dhabi do ano passado, que tanta tinta fez correr. Isto para além da própria criação, em 2015, de um ‘Virtual Safety Car’ (‘VSC’) que, não entrando fisicamente em pista, é activado como se lá estivesse, aplicando-se em situações de menor gravidade, solução encontrada para, nomeadamente, se evitarem perdas de tempo e atrasos nos programas dos fins-de-semana.
Mas não só, pois os próprios veículos que têm servido como ‘Safety Cars’ – originalmente criados como ‘Pace Cars’ (em tradução live é qualquer coisa como “viaturas que ajustam o passo / reduzem o andamento”) – têm vindo a evoluir de um modo bastante significativo, em linha com as cada vez maiores exigências da modalidade ao nível da segurança. Nada há, por isso, de equivalente entre os dois Aston Martin Vantage e DBX ou os Mercedes-AMG GT Black Series e GT 63 S 4MATIC+ que enchem o olho aos fãs da temporada 2022, face ao Porsche 914, o primeiro de todos, usado no GP do Canadá de 1973, ou ainda aos menos prováveis, mas bem reais, Fiat Tempra, Opel Vectra, Renault Clio Williams e até um Tatra 613, que tem uma impensável história associada, viaturas que também já desempenharam esse papel (ou algo semelhante), com resultados muito díspares!
Do comandante errado de uma corrida…
Tudo começou em 1973, quando num bastante tempestuoso e, por isso, acidentado GP do Canadá, se fez entrar na pista de Mosport um Porsche 914 ‘Pace Car’ amarelo, fruto de um acidente entre François Cevert (Tyrrell / Ford) e Jody Scheckter (McLaren / Ford). Conduzido por Eppie Wietzes, um ex-piloto local, espelhou-se de imediato a inexperiência do próprio e de toda a organização da corrida, ao colocar-se à frente não do líder na altura, mas de um outro monolugar, o Iso-Marlboro / Ford do neozelandês Howden Ganley.
Com isso e com o posterior desenrolar e final da corrida, demorar-se-ia várias horas até se encontrar o seu verdadeiro vencedor, decisão que veio a ser tomada já muito depois do baixar da bandeira axadrezada. O próprio Ganley pensou (e até foi aplaudido) por ter ganho o GP, mas seria Emerson Fittipaldi (Lotus / Ford) a subir ao pódio como (suposto) vencedor, com direito a hino e tudo, posição que lhe seria depois retirada, em favor de Peter Revson (McLaren / Ford), em resultado da revisão da cronometragem.
Se ainda hoje o processo suscita algumas dúvidas, imagine-se na altura, não fosse este o 14º e penúltimo GP desse ano, quando os títulos ainda estavam em disputa. Ou seja, a cena foi molhada, mas também quente, muito quente!
Por essa razão ou talvez não, o seguinte recurso ao ‘Pace Car’ – de novo um Porsche, mas dessa feita um 911 Turbo – apenas ocorreria em 1976, primeiro no Canadá e depois no Mónaco, sem que se verificassem alaridos. Novo intervalo e eis que nos anos de 1981 a 1983 era de novo o icónico circuito monegasco a ter direito ao dito ‘Pace Car’, nessas ocasiões diversos exemplares do brutal Lamborghini Countach, já com pirilampos de emergência montados no tejadilho.
… aos modelos que marcaram a carreira de Ayrton Senna…
Seguir-se-ia um simples Ford Escort XR3i no GP do Brasil de 1984, no mesmíssimo Grande Prémio que marcaria a estreia na F1 de Ayrton Senna, aos comandos de um fraquito Toleman / Hart. Tratou-se de uma mera acção de marketing local da marca norte-americana, com direito a publicidade dedicada e tudo, mas sem que houvesse quaisquer desenvolvimentos posteriores. Quanto ao brasileiro, não foi corrida de que se quisesse lembrar muito, pois desistiu logo na volta nº 8, com problemas no turbo.
Novo intervalo de quase uma década e eis-nos chegados a 1993, quando se viu um improvável Fiat Tempra 16V no GP do Brasil, o primeiro a usar os dizeres “Safety Car” na sua carroçaria e que, no final desse GP, levou a bordo o seu vencedor, Senna (McLaren / Ford) claro está, numa memorável volta de consagração! Seguiu-se um Ford Escort RS Cosworth, pelo menos em Inglaterra e em França, com o seu inimitável aileron traseiro XXL, modelo mais adequado a estas andanças.
A seguinte estreia ocorreu em 1994, um Opel Vectra que, num GP de San Marino de muito má memória, teve o triste papel de agrupar o pelotão após o trágico acidente que vitimou Senna (Williams / Renault), num mesmo fim-de-semana onde também serviu para interromper as sessões de treinos, fruto do acidente, também mortal, do austríaco Roland Ratzenberger (Simtek / Ford) e de um outro, protagonizado por Rubens Barrichello (Jordan / Hart), com sérios ferimentos.
Mais tarde nesse mesmo ano, o bastante molhado e, por isso, interrompido GP do Japão via entrar em pista um Honda Prelude ‘Mk4’ para acalmar os ímpetos dos guerreiros, para em 1995 surgir um Porsche 911 GT2 (993) na Bélgica e, depois, um ‘Lambo’ Diablo no Canadá.
… até a um piloto japonês atropelado!
Foi na época de 1995 que ocorreu o ponto alto – ou será baixo?! – neste domínio, quando a organização do GP da Hungria recorreu a um Tatra T-623 R, aqui como ‘Medical Car’, equipado com um potente bloco V8 de 3,8 litros. ‘Made in Československu’, o modelo acabou por se envolver num peculiar acidente, quando acorreu a um incidente de corrida: tendo parado o seu Footwork / Hart nos limites da pista, com o motor a fumegar, o japonês Taki Inoue saiu do carro e foi buscar um extintor, regressando sem se aperceber da chegada do Tatra que, travando em cima da relva, acabou por o atropelar. Assista aqui a toda a cena.
Caído na relva com enormes dores musculares, o japonês não imaginava que o seu dia ficaria ainda pior, não só porque teve de esperar que o GP acabasse, para que o pudessem evacuar por helicóptero (se o aparelho saísse do circuito, a corrida teria de ser interrompida), mas também porque quando chegou ao hospital exigiram-lhe um pagamento antecipado, ou não o iriam tratar! O pobre do Inoue estava, muito naturalmente, de fato de competição!
Depois, no GP da Argentina de 1996 apareceu um Renault Clio Williams 2.0 16V (150 cv), no que foi um one-off da marca francesa neste domínio, recorrendo aos préstimos de um certo pluri-campeão de ralis francês, de seu nome Jean Ragnotti.
1996: O início da era Mercedes-AMG
A partir daqui nada foi igual, com a FIA a instituir a obrigatoriedade do Safety Car em todos os GP a partir da Belgica de 1996, fechando um chorudo contrato com a Mercedes, marca germânica que, através da sua divisão de motorsport AMG forneceria, sucessivamente e até à data, mais de uma dúzia de exemplares
Ao Mercedes C 36 AMG (W 202) usado em pouco mais de metade da época de 1996, seguiram-se o CLK 55 AMG (C 208; de 1997 a 1999), o CL 55 AMG (C 125; 1999 e 2000) e o SL 55 AMG (R 230; 2001 e 2002). Em 2003 voltou-se ao CLK 55 AMG (C 209), seguindo-se o SLK 55 AMG (R 171; 2004 e 2005) nas duas temporadas seguintes e o CLK 63 AMG Black Series (C 209) em 2006 e 2007.
Em 2008 e durante dois anos o SL 63 AMG (R 230) foi o menino bonito dos paddocks da F1, antes da estreia do imponente SLS AMG (C 197), que teve esse papel entre 2010 e 2012, ano em que passou o testemunho, a partir do GP da Alemanha e até 2014, ao SLS AMG GT (C 197). Entre 2015 e 2018 deslumbrámo-nos com o Mercedes-AMG GT S, a que seguiu o Mercedes-AMG GT R, até 2021. Na presente temporada é o Mercedes-AMG GT Black Series (C 190) que nos tira o fôlego, sempre que surge nos ecrãs, quase fazendo esquecer o que lhe está por detrás!
Instituídos em 1996, os ‘Medical Cars’ têm evoluído do C 36 AMG (W 202) ao E 60 AMG (W 210) do ano seguinte, para entre 1998 e 2014 se usarem, sucessivamente, as versões Estate dos modelos desportivos C 55 AMG (S 202), C 32 AMG (S 203), C 55 AMG (S 203) e C 63 AMG (S 204). Depois, entre 2015 e 2021 essa intervenção médica rapidíssima passou a estar a cargo de um Mercedes-AMG C 63 S Estate (S 205), papel que em 2022 é assegurado por um Mercedes-AMG GT 63 S 4MATIC+ (X 290).
Assista neste vídeo e também neste a tudo o que se passa no exterior e interior dessas viaturas de intervenção rápida, numa explicação dada na primeira pessoa pelo piloto alemão Bernd Mayländer, visto como “um dos homens com um dos melhores empregos do mundo”, ou não fosse ele quem conduz, desde 2000, todos os ‘Safety Cars’ da F1!
2021: Partilha de tarefas com a Aston Martin
A partir do ano passado a marca alemã passou a dividir essa função com a Aston Martin, construtor britânico que então regressou ao circo da F1, 61 anos depois da sua última participação como equipa oficial. Os GP em que uma e outra actuam são decididos de comum acordo, em função dos mercados em que comercializam as suas viaturas, com a marca inglesa a usar versões especiais dos seus modelos Vantage ‘Safety Car’ e DBX ‘Medical Car’, entretanto evoluídos, em alguns pontos, face aos exemplares estreados em 2021.
Segundo os registos disponíveis, desde a sua introdução e até à data, o ‘Safety Car’ já terá sido activado perto de três centenas vezes; houve 13 GP que se iniciaram atrás do dito e mais 10 cuja bandeira de xadrez foi dada com ele em pista, isto para além de mais uns quantos reinícios, em diferentes fases das corridas. Quanto à sua versão virtual ‘VSC’, a funcionalidade foi testada no GP de Austin (EUA) em 2014, sendo depois implementada a partir do ano seguinte, na sequência do acidente mortal de Jules Bianchi (Marussia / Ferrari) no GP do Japão de 2014. O ‘VSC’ já foi activado meia centena de vezes, a primeira delas no GP do Mónaco de 2015.
Fotos: Oficiais / F1, Mercedes-Benz, Aston Martin, Porsche, Lamborghini, Ford, Renault, Tatra Museum, Fiat