1º Rallye Automovilista Ibérico 1956: Um one-off que não mais se repetiu
Chamou-se 1º Rallye Automovilista Ibérico e foi uma prova de estrada que, no já bastante longínquo ano de 1956, se organizou pela mão das federações dos dois países, o Automóvel Club de Portugal e o Real Automóvel Club de España. Mas, apesar do forte entusiasmo entre os aficionados das corridas de automóveis e até, apesar de um acidente mortal, um propalado sucesso desportivo, de exposição mediática, a coisa ficou por aí!
Inicialmente pensei que a história deste one-off se contasse em poucas linhas, mas, afinal, há muito para dizer, pois quanto mais investiguei, mais encontrei. Maravilhas do World Wide Web, pelo que ´bora lá, então…!
Era uma vez – a grande maioria das boas histórias começam assim e esta que vos tenho para contar é muito boa, acreditem, passe a modéstia – 85 carolas das corridas, de ambos os lados da fronteira mais umas quantas inscrições soltas de França, Alemanha e Holanda, que se associaram a uma iniciativa que contou com o alto patrocínio dos jornais lusos “Diário de Notícias” e “O Século” e de dois, “Informaciones” e “Marca”, do lado dos nuestros hermanos. Não era para menos, já que um percurso com uns quantos milhares de quilómetros iria ligar a capital madrilena ao sempre esplendoroso Estoril; por outro lado era a 13ª e última jornada do 4º Campeonato da Europa de Ralis de 1956, mas onde também se decidiam os títulos português e espanhol, pelo que era natural e grande a expectativa em redor desta recém-nascida prova.
Disputando-se entre os dias 1 e 4 de novembro desse ano, os concorrentes partiam de vários pontos dos dois países (Lisboa, Porto, Sevilha, San Sebastián e Barcelona), algo que era bastante comum dos ralis da altura, com a maioria dos grandes a estruturarem-se num percurso de concentração diferenciado, seguido de outro competitivo, igual para todos e já a doer bem mais. Uma vez concentrados na capital espanhola, faziam-se à estrada, batendo-se no percurso comum cuja meta estava instalada no Estoril. Para além do rali de estrada, houve 5 provas complementares, uma de manobrabilidade em Madrid, uma subida de 2 km da Rampa de Galapagar, mais 1 km de arranque no Porto e outra de aceleração e travagem, já em Lisboa, terminando-se a festa com uma prova de regularidade e velocidade na envolvente do Casino Estoril.
Do plantel constavam diversos nomes ibéricos das provas de estrada da altura, aos comandos de máquinas como a Porsche e a Renault (foram as mais representadas), ou ainda Alfa Romeo, Mercedes, Peugeot, Ford, Fiat, Volkswagen e Citroën, bem como de marcas entretanto desaparecidas da Triumph, MG, Sunbeam, Austin e Simca, ou até de uns mais peculiares Goliath GP 700, Panhard Dyna Z 850, Pegaso Z102 ou DKW F 91.
Era tudo quase de série, nada de roll-bars, nem reforços de carroçaria, chips – o high-tech era mesmo na afinação da porca e do parafuso, no olhómetro e no apuro do ouvido – não havendo também quaisquer preocupações de segurança como fatos de competição ou até mesmo capacetes, algo quase inimaginável nos dias que correm. Uns quantos pneus sobressalentes e uma caixa de ferramentas a bordo, mais uns jerricans com combustível e siga a marinha!
Fernando Stock vence e conquista título nacional
Em termos de resultados, foi a dupla portuguesa Fernando Stock / Manuel Palma que, ao volante de um Mercedes-Benz 300 SL, garantiu a vitória final nessa única edição do rali ibérico. O português nascido em Paris impôs-se aos espanhóis Javier Sanglas / Lleo Pilar (Alfa Romeo Giulietta Sprint Veloce), relegando para o degrau mais baixo do pódio outra referencial dupla da altura, José Abreu Valente / José Luís (Porsche 356 Pre-A 1300).
A diferença entre os dois primeiros cifrou-se em 23 minutos e 42 segundos, ou, melhor dizendo, em 1.422 pontos de penalização, no que era outra faceta dos ralis antigos onde, mais do que velocidade, a corrida para a vitória assentava na regularidade com que se cruzavam os diversos CHC (Controlos Horários de Classificação) espalhados pelo percurso, sendo que falhas nesse capítulo decorriam em penalizações por atraso (ou por avanço).
Com o resultado obtido, Stock conquistou os títulos de Campeão Nacional de Condutores (Ralis e Velocidade) e de Campeão Ibérico de Ralis, enquanto Sanglas assegurava o ceptro nacional espanhol. Sendo apenas sexto na prova, o alemão Paul Ernst Strähle (Porsche 356 1300 Super) falhou o título europeu desse ano, ficando o mesmo para o compatriota Walter Schock (Mercedes-Benz 300 SL), ele que nem precisou de alinhar na prova ibérica.
Acrescente-se que a vitória de Stock lhe valeu não só várias taças e medalhas comemorativas, como o acesso ao Grande Prémio Final no valor de… imagine-se, uns estonteantes 20.000 escudos, a que se somaram 10.000 da vitória no grupo e 5.000 da obtida na classe. Se à época os valores da nossa anterior moeda eram deveras significativos, ao câmbio actual representam a fantástica módica quantia de… 175 euros!!! Pois, nem para uma verdinha dá…!
Infelizmente, esta ímpar jornada ficou marcada por um trágico acidente protagonizado por José Manuel Simões (Porsche 550 RS Spyder) no Monte do Pião, na região da Covilhã. Uma colisão com um motociclista – como referi acima, os ralis da altura faziam-se em estradas abertas ao trânsito – foi seguida por uma queda por um barranco, despiste que resultou na morte do seu navegador Luís Borges.
Do aparente enorme sucesso ao (afinal) correspondente desaire
Apesar do elevado número de inscritos e do sucesso amealhado, o Rallye Automovilista Ibérico não mais se fez. Talvez pelo infeliz acidente mortal, ou também porque existiam, na altura, inúmeras provas de renome a querer integrar o Campeonato Europeu, havendo grandes clubes internacionais dos anos ’60 já com um peso significativo nas decisões da FISA (a FIA da altura), nomeadamente na definição dos calendários internacionais.
Deparei-me com uma referência do “El Mundo Deportivo”, publicação desportiva da época, onde se pode ler que o rali “constituiu um autêntico êxito técnico que justifica em pleno a sua inclusão no calendário internacional”, não só em termos desportivos, como pelo sucesso ao nível da cronometragem, feita pela Longines, marca que “colocou à disposição desta prova um amplo arsenal de cronómetros, mais de 50, que permitiram levar a cabo, com a precisão necessárias, o controlo desta difícil prova, (…) não apenas porque a competição se discutia ao centésimo de segundo, pelo que o prestígio do seu material, por um lado e o enorme valor dos dados dos controlos, por outro, deu uma noção de precisão e de autenticidade do rali (…)“ .
Os impulsionadores da iberização nos ralis no Século XXI
Hoje, o conceito ibérico no mundo dos ralis assenta noutra vertente, a dos troféus monomarca, nomeadamente através da Peugeot Rally Cup Ibérica, pioneira no processo e este ano já na sua Temporada 5, e a Toyota Gazoo Racing Iberian Cup, recentemente iniciada no Azores Rally, tema que a Garagem já explorou no texto “Toyota vs Peugeot: A Batalha da Ibéria”.
Outra filosofia é a de integrar ralis do país vizinho nos calendários da copa, algo que as espanholas Suzuki Motor Iberica, Renault España e Dacia España fazem, por vezes, completando os seus calendários com ralis corridos em solo luso, mas pouco mais do que isso. Aliás, fizeram-no todas em 2021, sendo que nenhuma delas assinalou Portugal no mapa em 2022.
Numa altura em que a diferenciação é um plus, penso que seria deveras interessante se a FPAK e o RACE dessem as mãos, reeditando algo de contornos semelhantes, embora adaptando a potencial prova aos contornos hoje obrigatórios no mundo dos ralis. Claro que o objectivo não será destronar o Vodafone Rally de Portugal ou o RACC Rally Catalunya / Rally de España do calendário oficial do WRC – faço votos que por lá se mantenham por muitos e bons tempos – mas apenas e só criar-se uma prova eventualmente pontuável para os dois nacionais ou mesmo para um dos regionais da FIA, como o Iberian Rally Trophy!
Classificativas de ambos os lados não faltam, perto de ambas as fronteiras, a norte, centro ou sul! Faltará, assim, vontade? A ideia ainda não terá surgido nas mentes iluminadas dos especialistas da poda? Ou será que outros (des)interesses se levantam?
Fotos: Oficiais / Porsche Club 356 Portugal / Centro de Documentação do ACP / AIFA (Peugeot Rally Cup Ibérica e Azores Rally)