E não é que a Lancia Martini Racing regressou mesmo aos ralis?
O meu desejo expresso há cerca de um ano tornou-se realidade… ou quase! A equipa Lancia Martini Racing regressou aos grandes palcos internacionais, mais propriamente a um evento de sonho, decomposto em três (in)dependentes, suportados por uma acção denominada “Martini Vintage”. Em destaque estiveram modelos que emanam a essência da marca no mundo dos ralis, mas também Cesare Fiorio, Senhor Grande desse universo, e ‘Miki’ Biasion e Tiziano Siviero, aos comandos de um impressionante Kimera Evo37, restomod do original 037. Um turbilhão de emoções que representou o reatar com um passado já tão longínquo!
Foi no início de Abril último que o ACI Sassari organizou a 5ª edição do Rally Storico Internazionale Costa Smeralda, num conjunto de dias intensos e emocionais vividos na região de Porto Cervo. Zona emblemática do tema, viu-se embelezada com diversos eventos e convidados, fazendo com que muitos fãs recuassem uns bons aninhos, até à longa época de diamante em que marcas italianas, em especial a conjugação Lancia + Martini, com o cunho Racing, associada às também originais Pirelli e à Sparco e respectivos embaixadores, conquistavam o universo dos ralis.
E eis que que se não quando, o Grande anúncio é feito, como pompa e circunstância, em vésperas da realização deste rali, hoje com um cunho assumidamente storico – “A Lancia Martini Racing está de volta” – trazendo para a realidade um desejo que pedi em textos escritos já há pouco mais de um ano, aqui na Garagem, iniciados pelo de título “… e se a Lancia e a Martini regressassem ao WRC?”.
Se soubesse que era só pedir, também pedia que outras realidades de outrora, como o da minha Audi Sport, ainda mais depois de ver, no Rali de Portugal, o Walter Röhrl ao volante de um Sport Quattro, bem como mais uns quantos Quattro A2 e Quattro S1 E2 no Rally Altronix do passado fim-de-semana. Desejo, também, que alguma da regulamentação desportiva – note-se que a de segurança parece estar no bom caminho – andasse uns quantos aninhos para trás, acabando-se com alarvidades como sejam a regra “SuperRally”, entre outras soluções implementadas num passado recente, em prol dos sempre multivaliosos direitos comerciais. Lá irei um dia destes!
Mercado sim, motorsport (ainda) nada
Comecemos pelo mercado. É já sabido – o anúncio foi feito há dias – que a Lancia está a preparar o regresso como marca, depois de anos em que pareceu definhar rumo a um trágico destino, agora preparando-se uma década de novidades. A marca apresentar-se-á numa espécie de “ou vai ou racha premium”, subjacente ao posicionamento que a Stellantis, o colosso industrial automóvel que hoje a detém, lhe preparou para o próximo futuro.
Mas, se de produto já se pré-anunciam três modelos – um novo Ypsilon (a actual geração apenas se vende em Itália), uma berlina de segmento alto e, por último, o recuperar do nome Delta – ainda nada se falou da componente de motorsport, que é tão cara à marca, num passado já distante, não só nos ralis, como no Mundial de Sport-Protótipos, pelo que a única maneira de hoje viver essa vertente é através dos eventos históricos, como este recente Costa Smeralda.
Subdividindo-se em vários eventos – um rali propriamente dito, duas provas de regularidade (média e desportiva) e ainda um muito especial “Martini Rally Vintage” – contou, por isso, com a presença de múltiplos exemplares, dos icónicos Fulvia e Stratos de Grupo 4, ao 037 e Delta “La Bestia” S4, ambos de Grupo B, bem como das várias declinações do Delta de Grupo A, do simples mas eficaz 4WD, ao “Deltona” HF Integrale 16V ‘Evoluzione’.
Como cereja no topo do bolo, ali estiveram também uns exemplares Kimera Evo37, um restomod desvendado em 2021 pela Kimera Automobili, como recriação do original 037, dos saudosos anos 80.
Mas melhor do que tudo isso foi o facto de que muitos dos modelos acima terem surgido como se, de repente, o tempo tivesse andado para trás, aparecendo aos nossos olhos com as inesquecíveis listas da Martini Racing, ou até também pela presença da dupla Massimo (‘Miki’ prós amigos) Biasion / Tiziano Siviero, aos comandos de um Kimera Evo037 muito especial, ostentando as cores dessa saudosa estrutura, o outrora departamento de competição da empresa de bebidas (semi)espirituosas italiana.
Mas não só isso, pois também Cesare Fiorio disse “sim” ao evento, um nome XXL dos ralis e que, entre outros, foi também Director Desportivo de equipas de F1. Foi ele, aliás, o principal impulsionador da entrada da marca italiana na modalidade, após anos de renitência dos seus responsáveis em fazê-lo, decisão tomada em 1969, depois da inscrição, pelo próprio nas temporadas anteriores, de uns quantos Lancia Fulvia em ralis internacionais, que resultaram em vitórias em ralis de renome como o Tour de Corse (Sandro Munari) ou o RACE Rally de España (Ove Andersson) de 1967.
Ao comando da recém-criada HF Squadra Corse Lancia, Fiorio alcançava, logo em 1969, o seu primeiro ceptro internacional, no então Campeonato Europeu de Ralis de Marcas – a vasta maioria das provas de estrada corriam-se no Velho Continente – com Harry ‘Sputnik’ Källström, época que o sueco iniciou com um Fulvia 1.3 Coupé HF (Grupo 2), modelo entretanto evoluído para uma versão de Grupo 4, com motor 1.6, assim batendo as armadas da SAAB, Ford, Porsche, Opel e BMW. Depois a Lancia conquistava o título do Campeonato Internacional de Marcas de 1972, vencendo três dos seus nove ralis.
Passando a integrar ralis de outros continentes, a série evoluiria, em 1973, para Campeonato do Mundo de Ralis – Construtores, que hoje conhecemos simplesmente como WRC (a partir de 1977 também para Pilotos) palcos onda a Lancia alcançaria 10 títulos de Construtores, de 1974 a 1976 com o Fulvia e o Stratos, em 1983 com o 037 e de 1987 a 1992 seis consecutivos, com os diferentes Delta HF.
Juntou-lhes 5 títulos de Pilotos, começando pela Taça FIA de 1977 conquistada por Sandro Munari (navegado por Piero Sodano), naquele que foi o primeiro troféu de Condutores de sempre da história do Mundial de Ralis (atribuída em 1977 e 1978; a partir de 1979 como Campeonato do Mundo de Ralis – Pilotos), juntando-lhes, uma década depois, dois títulos Mundiais com Juha Kankkunen / Juha Piironen (1987 e 1991) e outros dois com ‘Miki’ Biasion / Tiziano Siviero (1988 e 1989). O livro do WRC regista um total de 56 vitórias absolutas da Lancia, 46 obtidas pelos diferentes Delta HF, mais 6 pelo 037 e ainda 4 do Delta S4 de Grupo B, sendo que a nível dos diferentes campeonatos regionais e até nacionais essa listagem torna-se por demais extensa. Pode relembrar ou (re)ler tudo aqui, aqui e aqui.
Kimera 037: o restomod dedicado ao Lancia 037
Foi umas semanas antes, noutro encontro que teve lugar na Casa Martini, em Pessione, que se deu a conhecer a presença no Rally Costa Smeralda Storico de um Kimera Evo37 com as cores da Martini Racing, bem como da Sparco e da Pirelli, viatura que viria, muito naturalmente, a capitalizar parte das atenções. Foi nesse inigualável “Carro 0” que Biasion e Siviero abriram o percurso do rali à seria e, naturalmente, do especialíssimo “Martini Rally Vintage”, evento desportivo exclusivo, reservado a um grupo selecionado de viaturas apenas e só com as cores da Martini Racing, trazendo de volta memórias e emoções há muito dormentes.
Quanto ao Kimera 037 que acelerou pelas estradas sardas, trata-se um conceito com carroçaria em fibra de carbono – a estrutura do original 037 de ralis era em fibra de vidro – mantendo a tracção traseira e a caixa de velocidades manual, bem como o motor longitudinal de 2,1 litros by Italtecnica montado atrás dos bancos, um quatro cilindros em linha com turbocompressor, aqui com uma potência máxima superior a 500 cv e cerca de 550 Nm de binário. Outros mimos são as suspensões Öhlins de triângulos sobrepostos e os travões Brembo de carbocerâmica, ou ainda as jantes de 18” à frente e 19” atrás.
Em face de todo este aparato e pelo sucesso dos diferentes eventos, Giulio Pes di San Vittorio, Presidente da ACI Sassari, era mais que um homem feliz no final do extenso programa, ” um evento ao qual dedicámos tempo e paixão. Satisfeitos por termos contribuído para o fortalecimento da união entre a Martini, a Sparco e Pirelli, parceiros históricos que ‘vestiram’ o Kimera Evo37 com que o ‘Miki’ e o Tiziano asseguraram fortes emoções”.
E então… vamos voltar a ver a Lancia no palco do WRC?
Bom, se o colosso industrial assim o entender, há mais que espaço para a sua entrada, algo que o promotor do WRC agradecia, pois há muito é seu desejo aumentar o número de actores principais compostos pelos actuais três protagonistas, a Ford (via M-Sport), a Hyundai e a Toyota.
Também pelo facto da vertente Stellantis Motorsport estar cada vez mais estruturada e sólida, assente nos envolvimentos oficiais da suas diferentes marcas: a Alfa Romeo está solidamente na Fórmula 1; vamos ter a Peugeot no Mundial de Resistência (WEC) já este ano, marca que também aposta nas copas monomarca, de ralis e velocidades, em diferentes países; a DS Automobiles está e estará no Campeonato do Mundo de Fórmula E, juntando-se-lhe, já para o ano, a Maserati, com os novos monolugares 100% eléctricos “Gen3”; a Opel está no Europeu de Ralis Junior e, também, nos troféus, aqui destacando-se a inédita Opel e-Rally Cup eléctrica, a primeira no planeta; a Citroën está no Mundial de Ralis, no subescalão WRC2, apostando na competição cliente em diversos mercados; a Abarth aposta nas fórmulas de iniciação de monolugares, como a F4, em divesos países europeus, juntando-lhes, este ano, o Brasil; e tem ainda um pé no eTCR, Campeonato FIA de Carros de Turismo Eléctricos, integrando a sua Alfa Romeo numa parceria. Uff!!!
Faltam colocar neste ramalhete a FIAT, Chrysler e Dodge e as marcas de offroad JEEP e RAM. Dado o sucesso do novo 500 eléctrico não me surpreenderia que enveredasse pela velocidade, num troféu monomarca, as duas americanas terão, naturalmente, os olhos postos nas corridas em terras do Uncle Sam, como a NASCAR ou mesmo nos subescalões de resistência (IMSA ou mesmo Le Mans), guardando-se as duas últimas para o todo-o-terreno, quiçá com o Dakar em vista!
É tudo uma questão de contas pois, mais do que nunca, os números, os euros e os dólares falam mais alto, traduzindo-se em lucros para os accionistas. Numa altura em que a única coisa que os construtores mundiais buscam avidamente é ter um custo vs benefício positivo, no verde, esse regresso da Lancia ao WRC poderá acontecer quando e se a Stellantis encontrar essa fórmula mágica, que transforma os milhares de investimento em milhões de retorno. Mas… vai uma apostinha?
Fotos: Oficiais / Rally Costa Esmeralda Storico