A bordo da imparável dupla portuguesa da Team Renault 4L 60th Anniversary
Criar e fazer crescer o projecto Garagem tem sido uma aventura. Uma aventura que me dá um prazer enorme continuar a viver e que me tem, igualmente, possibilitado experiências verdadeiramente inesquecíveis. Porque os automóveis, sendo o ponto central da nossa temática, são “apenas” o elemento comum, partilhado entre os ensaios, apresentações, histórias de pessoas, modelos e corridas que escrevemos e partilhamos sempre que podemos.
E a história que hoje aqui me traz é a de um grupo de pessoas apaixonadas por automóveis e aventuras, duas clássicas Renault 4L e praticamente cinco mil quilómetros acumulados no East African Safari Classic Rally, a mais dura prova do mundo para veículos clássicos. Uma autêntica odisseia terminada com sucesso pelas míticas “4L”, verdadeiras heroínas de uma demolidora prova de nove dias, mesmo para máquinas mais aptas e mais bem preparadas para enfrentar os desafios impostos pelo terreno e paisagem africanos.
Uma aventura que, graças ao convite da Renault, pudemos agora reviver – não em África, mas na zona de Leiria – conhecendo não só os protagonistas mecânicos da aventura, mas também os quatro corajosos portugueses, bem como a estrutura que os assistiu, equipas que os conduziram até ao fim da prova, levando o icónico modelo da Renault bem além das capacidades para as quais foi pensado ao ser apresentado em 1961. Desgastadas, é certo, mas vivas e cheias de histórias para nos contar, num dia absolutamente memorável passado na sua companhia.
A minha estreia ao volante de uma 4L
Iniciei o meu dia a bordo da 4L mais conhecida de Portugal, uma unidade que fez história com inúmeras participações no nosso principal rali, bem como em provas do mundial, terminando todas aquelas em que alinhou e conquistando, sempre, os corações daqueles que a viram passar. Para quem nunca tinha guiado uma Renault 4L, poder fazê-lo, pela primeira vez, na “JD-21-03” da incrivelmente simpática dupla António Pinto dos Santos/Nuno Rodrigues da Silva foi uma autêntica honra.
Com alguma ginástica e já de capacete colocado, superei a roll bar e instalei-me no apertado habitáculo da 4L. Com a ajuda de um dos membros da equipa, coloquei o cinto de quatro apoios e ao meu lado estava já o navegador de serviço, Nuno Rodrigues da Silva, que me colocou, de imediato, à vontade naquela que foi a sua casa durante nove longos dias no Quénia. Depois de familiarizado com o “padrão” da caixa de velocidades, arrancámos para o percurso de terra que nos permitiria sentir um pouco das emoções vividas em África no passado mês de Fevereiro.
Ainda nem duzentos metros tínhamos feito e já eu estava rendido. Avancei com precaução, com uma perfeita noção da inerente responsabilidade, mas decidido a desfrutar de uma oportunidade única. Porém, não só nunca tinha conduzido uma 4L, como não tenho qualquer experiência a andar a ritmos animados sobre gravilha. Também não queria, de maneira nenhuma, entusiasmar-me ao ponto de exceder aquilo que o meu navegador consideraria como a velocidade aceitável para o dia.
Mas mais à frente, já a velocidade estabilizada e após as primeiras curvas, o meu navegador diz-me: “Está presa por arames, mas aguenta tudo!” Ganhei alguma confiança com a motivação do Nuno e comecei a sentir-me mais à vontade com as reacções lentas, mas muito recompensadoras da muito suave 4L. Tratei-a com respeito, evitando as depressões mais agressivas e pedras mais ameaçadoras e o Nuno confirmou que foi mais ou menos aquela a abordagem que assumiram no Quénia. Avançar, com decisão, a bom ritmo, mas evitando zonas mais problemáticas para a boa saúde da máquina.
A potência pode até ser “curta”, mas na zona mais íngreme do percurso, fiquei surpreendido com a disponibilidade do motor que me permitiu manter “uma 2ª” engrenada e chegar ao topo da subida sem grandes problemas. Os travões são, também eles, “curtos”, e a posição elevada do pedal – os três muito próximos, à boa maneira “do antigamente” – requer alguma habituação. No entanto, com o meu andamento, não senti falta de mais. Quanto ao manípulo da caixa de velocidades em posição elevada, já estava, por esta altura, habituado ao seu diferente, mas correcto funcionamento.
Já perto do meio do percurso, ao ver que o piso assim o permitia e que à frente o terreno não era muito acidentado, elevei um pouco mais o ritmo e cheguei mesmo a corrigir por duas ou três vezes a trajectória das rodas traseiras. Umas humildes escorregadelas feitas a, imagino eu, 30 ou 40 km/h, mas muito recompensadoras para um fã de ralis com zero experiência na matéria. Ao meu lado, o meu navegador dizia-me: “Já te estás a habituar!” Obrigado, Nuno. Por mim, levava o dia ali, a aprender.
Com o final da “classificativa” à vista, numa zona mais aberta e onde nos aguardavam toda a equipa e restantes convidados do evento, havia muito espaço para acelerar ainda mais a 4L e com ela levantar uma grande poeirada final. Mas não, não o fiz. Resisti. Por respeito à surpreendente máquina, pela qual ganhei ainda mais admiração, ao meu “colega de equipa”, que me ajudou ao longo do percurso, bem como ao seu habitual piloto, o António, que com um sorriso me perguntou à chegada: “Então, gostou de conduzir?” Se gostei. Não faz ideia, meu caro.
A minha estreia com um piloto de ralis ao volante de uma 4L
Para a segunda parte da experiência, calhou-me a Renault 4L carinhosamente apelidada de Zebra, dado o padrão da sua “pele” branca e preta. Depois de ter estado à conversa com o seu navegador, Marco Barbosa – que comigo partilhou que “pouco tivemos de lhes fazer para estar aqui hoje, mudámos o óleo e pouco mais” – ocupei o seu lugar na 4L e ao meu lado sentava-se já Pedro Matos Chaves, experiente piloto que, sabia eu, ia elevar bastante a fasquia do andamento por mim adoptado uma hora antes. Ainda assim, e mesmo sabendo que para o Pedro aquele ritmo estava longe de ser rápido, nada me preparou para as primeiras curvas.
Arrancámos e o Pedro disse-me: “João, preparado? Vamos a isso, então. Isto dá para teres uma ideia do que fizemos lá.” A um primeiro salto em que a 4L perdeu, certamente, algum contacto com o solo, seguia-se uma primeira direita, com descida logo a seguir, na qual, sabia eu, havia um grande buraco algures ao meio do caminho. A voar baixinho, a 4L apontou “lá para baixo” e eu nem sequer me recordo se senti a passagem no buraco ou não. Foi neste momento que vi o quão mais elevada estava a fasquia. Bem mais do que bastante.
Já bem embalados por ali abaixo, seguia-se a minha zona preferida do percurso, uma curta sequência de esquerdas e direitas, com variações de altura, em que o Pedro colocou, de forma segura e controlada, a 4L pendurada no eixo traseiro, dançando pelo encadear de curvas, bamboleando com elegância de uma curva para a outra, numa dança perfeitamente dominada via volante, com golpes rápidos, mas suaves, de contra brecagem. Absolutamente viciante.
Nas zonas mais lentas, o ritmo baixa e o Pedro comenta comigo: “Temos que respeitar a carrinha. Temos de garantir que está pronta a sofrer o mesmo castigo no dia seguinte e tem de chegar ao fim.” Porém, mesmo abrandando nas zonas mais irregulares, o Pedro, aos meus olhos, ia a “dar-lhe bem.” Imagino, também, que o castigo do piso queniano tenha sido muito mais exigente do que o desta classificativa em Leiria, pois o som ensurdecedor a bordo só era superado pelo dos guarda-lamas a serem raspados pelos pneus Fedima cardados.
Mas a 4L nunca parou. Nem mesmo nas curvas mais pronunciadas e com trilhos, em que, mesmo a uns 40 ou 50 km/h, por momentos, pensei que a ia começar a ver a classificativa do ponto de vista de um australiano. Mas não. A 4L inclinou, mas não tombou. E o Pedro, com a habitual boa disposição e mesmo a “dar-lhe bem”, nunca deixou de relembrar momentos vividos durante a prova, nem de falar sobre como deve ser conduzida a 4L para dela extrair tudo o que é possível, preservando-a. Amanhã a que horas, Pedro?
Inesquecível e indestrutível
Com estas palavras, espero ter conseguido transmitir-vos o quão especial este dia foi para mim. Mas para contar-vos a história do que a Team Renault 4L 60th Anniversary viveu no Quénia, ninguém melhor do que o António, o Nuno, o Pedro e o Marco para o fazer, pois acredito que o que ali vivenciaram lhes permitirá, espero eu, escrever um livro sobre esta estupenda aventura. Pelas histórias que partilharam nas conversas que tivemos ao longo do dia, seria uma leitura incrível e tenho a certeza de que quem tiver a sorte de os ouvir falar sobre os desafios, os percalços, os pontos altos e baixos, vai ficar, certamente, “agarrado” à riqueza e emoção das suas palavras.
Até lá, se há “alguém” que conta essa história tão bem, ou melhor, do que o António, o Nuno, o Pedro e o Marco, esse “alguém” são estas duas belíssimas Renault 4L. Levadas ao limite, mas com respeito, contam esta história através dos muitos barulhos das folgas das suas desgastadas suspensões, das suas carroçarias cheias de “feridas”, com painéis presos com braçadeiras, do pó acumulado em tudo o que é sítio, mas, acima de tudo, fazem-no porque apesar das pernas estarem cansadas e do rosto ter imensas rugas, o coração continua a bater, forte e são, como sempre. Um automóvel inesquecível e indestrutível, como poucos dos novos o serão.