Hypercars, a Fénix do mundo da Endurance
Após uma indesejável dormência de duas décadas, a categoria de Resistência – ou Endurance para os mais puristas – renasce das cinzas, qual Fénix sobredimensionada. Fruto de um acordo tri-partido entre o ACO, a FIA e a IMSA, numa concórdia finalmente alcançada entre as duas federações dos dois lados do Oceano Atlântico, a disciplina parece voltar aos seus tempos áureos, altura da história cujo sucesso quase se equiparava ao da própria Fórmula 1. Isto porque para o triénio de 2023-25 preparam-se mais de uma dezena de projectos Hypercar (e derivados) de diferentes construtores de híper-desportivos, todos sob a égide de uma hibridização já implementada nos patamares de topo da disciplina.
Nascidas no longínquo ano de 1953, então como Campeonato do Mundo de Sports Cars, as corridas dos grandes modelos desportivos cedo granjearam uma enorme adesão e, se ao início eram os chamados gentlemen-drivers a fazer o gostinho ao pé, logo os grandes construtores ali viram um filão que lhes dava uma alternativa à F1. Dali até 1992, os campeonatos reservados aos protótipos desportivos e aos Grand Touring (GT) evoluíam ano após ano, mudando algumas vezes de denominação – uma das mais conhecidas foi o Campeonato do Mundo de Sport-Protótipos – mas mantendo sempre a sua essência de resistência, que encontrava, a cada ano, o seu ponto alto nas grandes provas de 1.000, de 6 e 8 Horas e, naturalmente, nas 24 Horas de Le Mans, mítica prova francesa cuja 100ª edição se correrá em 2023.
Essa senda e esse sucesso decorreria até 1992, altura em que a categoria já definhava, para depois entrar numa espécie de suspensão de duas décadas. Vinte anos depois, em 2012, a FIA voltava a recriar o conceito e a endurance regressava ao mundo dos vivos, como World Endurance Championship (WEC), sendo que hoje, novos 10 anos passados, esse reerguer das cinzas está a evoluir para o que parece vir a ser uma das mais promissoras vertentes do motorsport mundial. Tal é resultado do acordo finalmente alcançado entre a FIA (Fédération Internationale de l’Automobile) e a IMSA (International Motor Sports Association), na dinamização de uma série idealizada pelo ACO (Automobile Club de l’Ouest), célebre organizador da icónica corrida de Le Mans, gerando uma autêntica corrida aos estiradores.
Antecipa-se, assim, a entrada oficial de múltiplos construtores nas categorias do WEC e do IMSA SportsCar Championship (IMSA SCC), não só nas séries realizadas em ambos os lados do Atlântico, hoje num ambiente cada vez mais virado para a hibridização, como, muito em especial, nas 24 Horas de Le Mans, onde todos querem escrever o seu nome no log dos vencedores!
Para o efeito e falando dos escalões de topo de ambos os campeonatos, o conceito híbrido tomou o leme deste transatlântico, levando à criação de duas categorias de veículos: Le Mans Hypercar (LMH ou vulgo Hypercar) e Le Mans Daytona hybrid (LMDh), ambas assentes em protótipos construídos de raiz, e algo semelhantes em termos mecânicos, havendo uma diferença essencial: no caso dos chassis, os LMH são de concepção própria e os LMDh obrigatoriamente fornecidos por um conjunto de entidades (Dallara, Ligier, Multimatic ou Oreca)
No que se refere ao sistema híbrido, o conceito subjacente aos LMH assenta na concepção própria, com uma mecânica que pode dividir a potência por ambos os eixos, maioritariamente ao traseiro, mas podendo tornar a viatura num tracção integral. Já os protótipos LMDh têm mais restrições, a começar pelo software do sistema, selado e que não pode ser acedido. O motor é Bosch, gestão de potência e armazenamento de energia está a cargo da Williams Engineering e as transmissões são X-trac, tendo tracção apenas às rodas da frente, permitindo a regeneração de um máximo de 200 kW e direccionar um máximo de 50 kW ao eixo traseiro.
Outro detalhe, aqui para ambas as categorias, é a liberdade de os construtores e/ou equipa poderem escolher a arquitectura do motor de combustão interna associado, bem como a cilindrada e a tecnologia. No caso dos LMDh a potência máxima está limitada a 470 kW / 640 cv, crescendo aos 500 kW / 671 cv o débito possível nos LMH. Uma vez combinado com um sistema híbrido, a potência máxima pode elevar-se até aos 500 kW / 671 cv em ambos os casos.
A título de exemplos e relativamente aos quatro mosqueteiros da actualidade, o novo 9X8 da Peugeot aposta num V6 2.6 turbo, arquitectura que a Toyota também escolheu, mas adequando-a a um bloco 3.5 twin-turbo. Já a Glickenhaus conta com um motor V8 de três litros e meio, com turbo, enquanto a Alpine aposta num V8 4.5 DOHC naturalmente aspirado. A BMW testa um P66/3 oito cilindros em V híbrido turbo de 4,0 litros,
Em termos de aerodinâmica, as liberdades nos LMDh são mais restritivas face ao que se pode fazer aos LMH. O peso dos conjuntos não pode ultrapassar os 1.030 kg.
Um, dois, três, quatro… 10 construtores de Hypercars?
Lançada no WEC 2021, a categoria Hypercar teve imediata adesão oficial da Toyota e da Scuderia Cameron Glickenhaus, com os seus GR010 Hybrid e SCG 007 LMH, e também a adesão da Alpine, com um A480 LMH, protótipo assente num chassis Rebellion R13 da autoria da Oreca, à laia de preparação de uma entrada mais a sério em 2024, com um chassis LMH de concepção própria. Já este ano, o trio passou a quarteto, com a muito esperada entrada em cena da Peugeot, com um impressionante 9X8 Hypercar, conceito que, entre outros radicalismos, abdica da utilização de uma asa traseira!
Se em 2022 temos uma luta a quatro pelas vitórias, ainda que a marca do Leão esteja mais a apalpar terreno, preparando o ataque em força na próxima época, no triénio 2023-25 poderemos vir a contar com nada menos do que 10 construtores – sim, leu bem… uma dezena!!! – em liça e isto só no conjunto dos Hypercar e dos LMDh), para o WEC e para o IMSA SCC, assim se confirme a validade dos já anunciados múltiplos projectos que têm vido a público e de outros de que apenas há uns zum-zuns.
Senão vejamos! É publica a associação da Porsche à norte-americana Penske, estando a decorrer os testes ao novo 963 Hypercar, tal como acontece com a Cadillac, que tem andado por diversas pistas com o seu, para já, denominado Project GTP Hypercar, co-desenvolvido com a Dallara. Aproveitando as suas instalações, nomeadamente Fiorano, a Ferrari já testa o seu protótipo LMH, tal como a BMW que há dias entrou em pista – curiosamente também em Itália – com o seu novíssimo M Hybrid V8, primeiro apontando aos LMDh e depois aos Hypercar.
Juntam-se-lhes, nos testes dinâmicos, outro nome histórico que poderá estar de regresso ao activo, assim se resolvam os diferendos de tribunal relativos à sua posse / utilização de nome, o da britânica Vanwall, com um LMH que a germânica ByKölles tem colocado em pista, a fazer os seus primeiros testes fora da vertente computacional. Nesta multi-milionária lista de marcas já em testes também figura ainda a norte-americana Acura, que irá inscrever os seus ARX-06 LMDh na série, protótipos que também já rodam em algumas pistas dos EUA.
Já no grupo dos potenciais aderentes, a Lamborghini Squadra Corse estará a desenvolver um LMDh, processo que a Audi Sport, que também analisa a potencial entrada na F1, também tem em mãos, tal como Bugatti, se bem que pouco ou nada esteja assegurado, para lá dos rumores que as dão como (quase) certas. Soa, ainda, a hipótese do regresso da Ford, falando-se que poderia aproveitar o potencial do conceito Fordzilla P1 desenvolvido para as plataformas de gaming, tornando-o realidade nas pistas, depois de o ter exibido fisicamente em eventos de âmbito internacional, e até mesmo a Mazda, que até 2021 discutiu as vitórias no campeonato IMSA e que poderá fazee evoluir, para 2023 ou 2024, o conceito de motor rotativo que a levou à vitória nas 24 Horas de Le Mans, em 1991. Como diz o outro, não há fumo sem fogo, pelo que resta aguardar para ver quais se irão aquecer os circuitos mundiais!
Com calendários diferentes de estreia, torna-se claro que as diferentes marcas irão apontar aos continentes e aos campeonatos que maior visibilidade – leiam-se chorudos euros ou dólares – lhes possam dar em termos de retorno, seja na série co-organizada pela ACO e FIA, ou na iniciativa da IMSA. Uma coisa é certa: todos têm os olhos postos nas icónicas 24 Horas de Le Mans, competição que todos querem vencer ou, em alguns casos, repetir vitória.
Acrónimo GTP de regresso aos EUA, mas só em 2023
São diferentes as nomenclaturas caso as viaturas corram sob a égide de uma ou de outra entidade, num vasto conjunto de acrónimos que tem sido desenvolvido (e também actualizado) para as corridas de resistência, formando uma espécie de sopinha de letras, inerentes às diferentes categorias em que os carros se inserem, dos protótipos de topo às viaturas dos sub-escalões, as que mais se assemelham ao que (habitualmente) vemos a circular nas estradas públicas.
Começando pelos protagonistas maiores e deste lado do Atlântico, temos, por um lado, a categoria Le Mans Hypercar (LMH ou simplesmente Hypercar), que é herdeira da anterior LMP1 (Le Mans Prototype 1). Podem ter tracção às rodas traseiras ou integral e algum tipo de hibridização para maior potencia. Hoje, como disse, são quatro as viaturas oficiais: duas a três unidades do Toyota GR010 Hybrid, mais um Glickenhaus SCG 007 LMH e um Alpine A480 LMH e dois Peugeot 9X8.
Um patamar abaixo surge a categoria LMP2 (Le Mans Prototype 2), destinada a viaturas com chassis Oreca 07 que usam um mesmo motor Gibson GK428 V8. É aqui que se inserem os carros de Filipe Albuquerque, piloto da equipa United Autosports, e de António Félix da Costa, integrante da JOTA, ou ainda os carros da Algarve Pro Racing, estrutura que não tem qualquer piloto português. Nas recentes 8 Horas de Monza estiveram 19 carros na grelha de partida.
O plantel completa-se com as categorias LMGTE Pro, com o envolvimento oficial da Corvette, da Ferrari e da Porsche, destinada a equipas e pilotos profissionais, e LMGTE Am, para amadores, também aqui contando-se com construtores de renome como a Aston Martin, Ferrari e Porsche, envolvendo mais de duas dezenas de viaturas. Portugal é aqui representado por Henrique Chaves, com um Aston Martin 4.0 L Turbo V8 da equipa TF Sport.
Atravessemos, agora, para os EUA, onde a série IMSA 2022 assenta em quatro categorias de viaturas distintas. A principal é, ainda, a Daytona Prototype International (DPi), no que será o último ano dessa denominação, tendo a IMSA anunciado que vai recuperar, para 2023, ano de estreia dos protótipos híbridos, as três icónicas letrinhas GTP (Grand Touring Prototype), categoria cujos primórdios de sucesso remontam ao final dos anos 70 do século passado, em substituição da referência inicialmente pensada de Le Mans Daytona hybrid (LMDh).
A muito competitiva DPi opõe, este ano, apenas duas marcas, estando de um lado a Cadillac, com os seus protótipos DPi-VR entregues a quatro equipas, uma delas oficial, num total de cinco viaturas, a que se juntam dois Acura AR35TT 3.5 L Turbo V6, um deles inscrito pela Wayne Taylor Racing, a casa competitiva de Filipe Albuquerque nas Américas.
Já a categoria Le Mans Prototype 2 (LMP2) dos EUA tem uma estrutura semelhante à europeia, com um mesmo chassis/motor Oreca/Gibson, aqui havendo um angolano de raízes lusas – Rui Pinto Andrade – integrado na equipa Tower Motorsport. Um degrau abaixo, na Le Mans Prototype 3 (LMP3) usam-se chassis diferentes, mas todos de motor Nissan, categoria onde compete João Barbosa, luso integrado na Seen Creech Motorsport, com um Ligier JS P320. Finalmente, temos as classes GT Daytona Pro e GT Daytona que agrupam os carros de Grand Touring (GT), destinando-se a primeira a formações com um selo quase oficial (Acura, Aston Martin, Chevrolet, Ferrari, Lamborghini, Lexus e Porsche) e a segunda a estruturas mais privadas, ainda que possam ter apoio dos grandes construtores deste tipo de viaturas. Estas sub-categorias totalizam cerca de meia centena de equipas!
Um pouco de história do hoje WEC…
Categoria de motorsport que já mudou mais vezes de nome no seu BI do que a idade de um proposto a teenager, as provas de Resistência evoluíram da original designação de Campeonato do Mundo de Sports Cars (1953-61) para Campeonato Internacional para Construtores de GT (1962-65), depois para Sport-Protótipos (1966-67), para Campeonato Internacional para Marcas (1968-80), Mundial de Resistência (1981-85) e também Campeonato do Mundo de Sport-Protótipos ((1986-90), antes de se chegar à renovada era dos Mundial de Sports Cars (1991-92), antes da tal morte aparente. Hoje, como se refere acima, vive sob o saudável título de World Endurance Championship, ou Campeonato do Mundo de Resistência.
Foi uma série que evoluiu dos encontros de viaturas de cariz mais desportivo, aptas para provas em circuito ou pistas, realizadas na Europa e América do Norte, reunindo muitos dos chamados gentleman drivers, a competições profissionais, com o envolvimento de marcas tão conceituadas como a Ferrari, Maserati, Porsche, Mercedes-Benz, Aston Martin, Ford; Matra, Alfa Romeo, Lancia, sem esquecer as mais recentes Jaguar, Peugeot e até Mazda.,
… e também da recente geração IMSA
Bem mais recente é o IMSA SportsCar Championship, série organizada pela International Motor Sports Association (IMSA) e que nasceu da fusão entre duas séries norte-americanas, a American Le Mans Series, que se correu de 1999 a 2013, e do Rolex Sports Car Series (2000-2013), sendo, também, herdeiro do anterior IMSA GT Champioship, inaugurado em 1971, evoluindo para um enorme sucesso e depois uma queda que, em 1998, levou à sua morte.
A nova versão corre-se desde 2014 e assenta arraiais na América do Norte, em especial nos circuitos (ovais e tradicionais dos EUA) a que se junta o circuito canadiano de Mosport, na que é a única excepção. As muito raras vezes que a IMSA visitou o México ou outro destino fora do seu continente foi numa das séries anteriores de GT ou sport-protótipos.
Acrescente-se o facto do português João Barbosa ter sido o primeiro co-Campeão da categoria (a meias com os seus colegas de equipa), nas temporadas de 2014-15, tendo também vencido a Michelin Endurance Cup, que se corre em paralelo, nesses dois anos e nos dois seguintes (2016-17) o último dos quais a meias com Filipe Albuquerque, outro português que viria repetir a dose na edição do ano passado.
Neste futuro mais que perfeito só falta (ainda) mais Portugal
Se numa mesma edição das séries e, por arrasto, de Le Mans, caso se inscrevam todos os construtores acima referidos, as grelhas de partida serão, no mínimo, estratosféricas, considerando que cada uma das 10 equipas inscreva 2 ou mesmo 3 carros. E só estamos a falar dos protótipos híbridos dos escalões superiores, sem acrescentar as viaturas das restantes classes que terão de encontrar o seu próprio espaço!
Em face de toda esta mais que aparente conjugação de estrelas, o futuro parece mais que perfeito, restando saber como, de facto, as coisas se vão passar e quem ruma a que campeonato! Outra coisa é, também, certa: há outras modalidades de motorsport que se vão ressentir com o sucesso dos Hypercars e afins! Uma última palavra para o facto de que, com todo este manancial de estruturas milionárias, possamos ver ascender à modalidade um número mais representativo de pilotos portugueses, que possam elevar a nossa bandeira nos mastros dos circuitos de todo o mundo!
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