Áurea de Ayrton Senna regressou ao Estoril
De entre todos os nomes que voltaram a surgir no Autódromo do Estoril, no fim-de-semana do Estoril Classics 2022, nomeadamente impressos nas tampas dos motores dos monolugares de F1, houve um em particular que, de facto, não se viu, mas que se fez sentir. Falo do saudoso brasileiro Ayrton Senna, havendo para mim, como jornalista de motorsport e como apaixonado pelas corridas, duas razões principais: os Lotus pretos e dourados da John Player Special e também um certo Williams FW08C. Explico tudo neste texto da Garagem.
Muito antes de sequer pensar em trabalhar no sector ou de fazer reportagens sobre o motorsport mundial, já a minha alma se alimentava deste tão vasto universo. Primeiro a ver as corridas nos poucos – à altura existentes / hoje desaparecidos – programas de televisão, mais o que lia nos jornais da especialidade, para mais tarde, assim que pude, me inscrever como Comissário de Pista da então ACDME – Associação de Comissários de Desportos Motorizados do Estoril, entidade que, há alguma décadas, tinha o exclusivo dos serviços de apoio às competições, nacionais e internacionais, da nossa então única pista permanente. Hoje já não é assim, pois, pelo caminho, formou-se o Motor Clube do Estoril, entidade também ali sedeada, obrigando a ACDME a estender o seu raio de acção para fora do autódromo, levando a que até abdicasse do “E” na sua nomenclatura.
Mas o que é que tudo isso tem a ver com Ayrton Senna? Muito, pois no dia 21 de Abril de 1985, em que o virtuoso brasileiro garantiu aquela que foi a sua primeira e inesquecível vitória na F1, no diluviano GP de Portugal, eu estava lá, no Autódromo, a assistir a esse feito e logo na primeira fila. Não, não era sentadinho na Bancada A e (pseudo) protegido da inclemente chuvada, algo que a borrasca batida a vento desse Domingo nem sequer o permitia, mas sim, de serviço no então “Posto 15”, à entrada da chamada Curva da Orelha (#7 na imagem), a apresentar bandeiras, ou até a empurrar para fora dos limites da pista uns quantos carros, fruto de uma qualquer avaria que, nos casos em que os motores berravam de vez, me obrigava a espalhar um mix de areia e cimento destinado a ensopar o óleo deixado no alcatrão. Não havia cá placas de Safety Car nem caras tecnologias de luzes ou cenas de “VSC” virtuais como hoje acontece. Era tudo a braço, à boa maneira antiga!
Encharcado até aos ossos, mas feliz por estar num local e a fazer algo que amava de paixão, vi com os meus olhos partes desse recital ao volante do Lotus 97T / Renault V6 com as cores da John Player Special, que alguém viria a descrever como “um dos exemplos mais reveladores de suprema capacidade de condução de Ayrton Senna”. Foi a única vitória de Senna em solo luso, após duas longas horas de corrida à chuva… e se chovia!!! Saído da pole, Senna liderou a corrida em todas as suas 67 voltas, das 70 inicialmente previstas, deixando o Ferrari de Michele Alboreto a mais de um minuto (1m 02,978s) e o Renault de Patrick Tambay a uma volta!
“Foi uma corrida difícil, tática, curva a curva, volta a volta”, diria Senna no final de um especialmente difícil GP em que, em certas passagens pela recta da meta e torre de controlo, até chegou a acenar aos responsáveis pela corrida, tentando que esta fosse interrompida, queixando-se que o carro escorregava para todos os lados, sendo muito difícil manter o controlo. “As pessoas pensam que não cometi erros, mas isso não é verdade – não tenho ideia de quantas vezes saí da pista! Uma vez eu tinha todas as quatro rodas na grama, totalmente fora de controle, e o carro voltou ao circuito. Todo mundo disse ‘Controle de carro fantástico’, mas foi apenas sorte”, comentou à imprensa da altura. E sim, nesse dia e face a essas condições, houve essa estrelinha a acompanhar o futuro Campeão do Mundo de F1.
E o Williams FW08C, onde entra nesta história?
Se essa parte está explicada, porque de meter um Williams FW08C ao barulho? Pois, porque dos dois monolugares que outrora pertenceram a Frank Williams e que, no evento Estoril Classics 2022, integraram o plantel da categoria Classic GP – Pre-1986 F1, um esteve, em tempos e por umas horas, nas mãos de Ayton Senna, naquele que foi o seu primeiro contacto de sempre com um Fórmula 1.
Regressemos à manhã do dia 19 de Julho de 1983, no Circuito de Donington Park, em Inglaterra, para uma sessão de testes da Williams, equipa que, um ano antes, se sagrara Campeã do Mundo de F1 – Pilotos com ‘Keke’ Rosberg, nascido Keijo Erik e que, entre outros resultados, venceu o GP da Suíça, foi 2º nos GP de Long Beach/EUA, da Bélgica e da Áustria e ainda 3º nos Países Baixos e na Alemanha, batendo Didier Pironi e John Watson na corrida a esse título.
Senna chegou ao circuito, falou com responsáveis e técnicos da equipa, olhou para o Williams FW08C, tocou-lhe e disse “É hoje!”, viatura que, minutos depois, seria seu por um par de horas. “Acho que Deus me está dando um presente, que estou esperando há muito tempo. Era um sonho que há muito tempo eu tenho e que está sendo realizado hoje”, acrescentou à reportagem da TV Globo, sob o comando de Reginaldo Leme, reputado jornalista brasileiro que o acompanhou nessa acção.
Após umas primeiras voltas de adaptação, com o então líder da F3 britânica a não querer abusar, o cronómetro começava a mostrar todo um outro cenário, pois estando cada vez mais confortável, nas cerca de 40 voltas que ali deu, Senna começou a fazer tempos mais rápidos do que os de ‘Keke’ Rosberg e Jacques Laffite, então pilotos oficiais da escuderia. Numa delas bateu o recorde do circuito, suplantando em segundo e meio o registo que Jonathan Palmer, então piloto de testes da equipa e Campeão da F3 britânica de 1981, havia alcançado semanas antes deste one-off.
Realizou, depois, vários outros testes de F1 nessa temporada – McLaren (Silverstone, a 25 de Outubro); Toleman (Silverstone, a 9 de Novembro); e Brabham (Paul Ricard, a 14 Novembro) – sem que assinasse com a equipa de Frank Williams, optando por iniciar em 1984 a sua carreira na F1 com a mais regrada Toleman, exibindo o ceptro de Campeão Britânico de F3 de 1983. Mas o destino escrevera que, um dia, Senna haveria de ir mesmo para a Williams, acordo assinado dez anos depois, com o trágico desfecho que todos conhecemos, no GP de San Marino, a 1 de Maio de 1994.
Mark Hazell e o histórico Williams FW08C
Hoje, quase 40 anos passados sobre esse primeiro contacto de Senna com o tal Williams FW08C, esse mesmo chassis – um dos sete que foram construídos nessa evolução “08C” – continua a mostrar-se nos circuitos mundiais, com uma decoração quase tirada a papel químico da usada na altura e mantendo o seu V8 Ford Cosworth DFV. É hoje parte do espólio de viaturas de competição do galês Mark Hazell e presença assídua em programas reservados aos F1 mais entradotes, como neste evento que a Peter Auto e a Race Ready co-dividiram, com o apoio do Automóvel Club de Portugal (ACP) e da Associação de Turismo de Cascais, sem esquecer o incansável trabalho na pista e nas boxes dos elementos do Motor Clube do Estoril.
Se na altura discutia as vitórias em Grandes Prémios que, no limite, se aproximavam das duas horas de duração, hoje tem a vida bem mais facilitada, dele exigindo-se que apenas participe em corridas com um máximo de 20 minutos. Afinal, já são várias décadas de leais serviços!
Quarenta anos passados e é Mark Hazell que hoje o explora, piloto galês nascido a 11 de Outubro de 1959, ou seja, já com 63 anos cumpridos. Fá-lo uma década depois de levar de vencida uma outra batalha tão pessoal, expressa numa secção de uma entrevista publicada numa edição do “Masters Racing Legends”: “Suplantei um cancro em 2012-13 e pensei, ‘F***-se, quero guiar um Formula 1! É o sonho de toda a gente, certo?”.
Após um primeiro contacto com a Fórmula Ford em 1986, com um Van Diemen RF86, abraçaria, depois, o mundos das copas monomarca – Porsche 911 e Renault Clio (2002-10) e logo depois os carros de turismo, primeiro com um BMW E36 320i no HSCC Super Touring Car Trophy (2014) e depois com um Ford Cortina Lotus, no Masters Pre-66 Touring Cars Championship (2017).
Foi nesse ano que aderiu à vertente dos F1 clássicos, mesmo que o seu primeiro contacto físico com um monolugar não tenha corrido bem, já que não conseguiu entrar no exíguo cockpit do Tyrrell 012 do seu amigo Martin Stretton. Mas logo surgiu a hipótese de o fazer com sucesso num Williams FW07, monolugar que viria a comprar na versão “07B”, viatura outrora usada por Carlos Reutemann, com ele participando em jornadas da FIA Masters Historic e outras conceituadas provas, como o GP do Mónaco Histórico, temporada em que também esteve na Euro F2 Classic 2000cc, aqui com um March 782. Em 2019, adquire este FW08C que vimos no autódromo, guardando na sua colecção o FW07B, apenas o tirando aqui e ali para encontros específicos, como para o Algarve Classic Festival 2022, evento que teve lugar no passado fim-de-semana no AIA.
Curiosamente, as primeiras voltas de Mark Hazell com o FW08C também foram dadas em Donington Park, o tal palco onde Senna se estreou na F1, apostando, depois, no Masters da FIA para F1 Históricos pós-1978, época de 2019 que terminou no 3º lugar. Mas seria 2020 o ano da consagração, como Campeão do FIA Masters Historic Formula One Championship (categoria Niki Lauda Class), uma época bastante encurtada pela pandemia, onde alcançou quatro vitórias, duas pole-positions e quatro voltas mais rápidas. Não houve mais porque a pandemia não deixou.
Quanto a resultados no bem mais recente Classic GP – Pre-1986 F1 do Estoril Classics, Mark Hazell começou por um 4º melhor tempo no Treino Livre, posição que repetiu no Qualifying que definiu a grelha de partida para uma Corrida 1 que nem uma volta completou, devido a um problema técnico. Arrancando, por isso, da 8ª linha da grelha para a Corrida 2, encetou a recuperação possível, terminando as 13 voltas ao Estoril no 8º lugar, a mais de um minuto do Lotus 87B de Nick Padmore – ver mais detalhe no texto “Estoril Classics 2022 e os Fórmula 1 de outras eras”, publicado há dias. Esta foi mais uma das muitas histórias deste Estoril Classic 2022, evento que reuniu cerca centenas de viaturas e pilotos, para um total de oito séries, emoldurando de público um Autódromo do Estoril como há muito não se via. Há, por isso, mais algumas que, em breve, vos quero trazer, aqui na vossa Garagem. Até “já”!
Fotos: Garagem/Jota Pê; Rui Reis Fotos; Peter Auto; Race Ready; Acervo Memorial Ayrton Senna; Renault Sport