Alpine A110 S – O automóvel perfeito não existe
Este foi um daqueles ensaios em que me foi difícil manter constantemente uma postura profissional. Dei por mim a pensar que num futuro relativamente próximo, conduzir um automóvel como o Alpine A110 S poderá já não ser possível. Dei por mim a desfrutar, mais do que a colocar à prova. Dei por mim a pensar se os responsáveis da Alpine ficariam muito zangados comigo se lhes devolvesse este A110 S “sem pneus”. Dei por mim a ponderar, simplesmente, não o devolver. Não há muitos automóveis que me façam pensar assim. Jamais o faria, obviamente, mas se um dia não conseguir resistir à minha potencial veia criminosa, a Alpine fica já alertada.
Estreei-me com o A110 há cinco anos no autódromo do Estoril. Já estava rendido à espetacular reinterpretação do design original, rendi-me, pouco depois, à direção, à dinâmica, ao motor, à agilidade e, acima de tudo, às sensações. Apreciei, dias depois, ao conduzi-lo fora do ambiente de circuito, a facilidade com que se deixa levar a ritmos do dia-a-dia. A sua ligeireza não exige uma suspensão exageradamente rija, nem um motor excessivamente guloso e por isso o A110, ainda que “adormecido” por entre o tráfego da cidade e nas voltinhas diárias, passou igualmente com distinção nesse importante teste, pois o condutor de um A110 pode também decidir colocar uma ou duas malas de viagem na dupla bagageira e lançar-se estrada fora num fim-de-semana prolongado até uma estrada de montanha ou qualquer circuito.
Depois do A110, o A110 S
Estava por isso muito ansioso por me reencontrar com um dos melhores automóveis que conduzi nos últimos anos, agora modernizado, mais potente e com um maior foco na performance, uma vez que este regresso ao brilhante A110 fez-se através da versão S. Não sei se não o preferia no icónico tom azul da Alpine, mas é impossível negar o apelo deste Laranja Fogo, combinado com o kit aerodinâmico com elementos em carbono que lhe “oferecem” 141 kg de downforce à velocidade máxima – que é muita, já lá vamos. Também as jantes de 18” me deixaram com algumas dúvidas. São belíssimas, atenção, mas não consigo não imaginar umas Speedline brancas em combinação com o azul ou, por que não, douradas em combinação com um A110 verde escuro. Sim, já me apercebi, estou, novamente, a perder o foco.
O interior replica o mesmo espírito do visual do exterior, um ambiente assumidamente racing, mas onde nos sentimos bem instalados, minimalista na abordagem, mas onde, na verdade, nada falta. No habitáculo, tenho de começar por destacar as baquets Sabelt, cujo pronunciado apoio é indispensável quando o ritmo aumenta, mantendo-nos no lugar ao curvar depressa. É verdade que o chassis Sport deste A110 S retira algum conforto quando comparado com o da sua versão “normal”, mas também as baquets são responsáveis pela menor capacidade de filtrar as vibrações que nos chegam ao corpo. O pendura dispõe igualmente de um verdadeiro apoio de pés para o ajudar a conter os movimentos nas travagens mais fortes. Ainda no habitáculo, o A110 S oferece, por exemplo, um painel de instrumentos digital, sistema de infotainment com telemetria integrada e sistema de som da Focal.
Fazendo uma comparação algo “desajustada”, pelo menos ao nível da performance, mas que me parece apropriada dado o conceito de ambos os modelos, achei o habitáculo do A110 mais adequado ao dia-a-dia ou a uma viagem ao melhor estilo grand tourer do que o do Mazda MX-5. O Alpine oferece mais soluções de arrumação, uma zona para colocar o smartphone, bem como um compartimento especial atrás dos bancos. Tal como no japonês, gosto que as portas do A110 exponham a cor da carroçaria e gosto, também, muito do tablier forrado a microfibra. Já a posição de condução é “só” exemplar. Não tenho nada a apontar. Quem se queixar da pouca visibilidade traseira é porque ainda não olhou bem para o design da carroçaria do A110. Na verdade, serão poucos os que terão coragem de se tentar colocar no retrovisor deste Alpine.
De colar ao banco, a acelerar, a travar e a curvar
Quando o conjunto é leve e quando a sua massa total está equilibradamente distribuída pelos dois eixos, o resultado é, quase sempre, muito bom. Neste caso – mesmo não sendo 50:50, mas sim, 44:56, entre a frente e a traseira – é genial. O Alpine A110 é, aliás, tão bom que Gordon Murray comprou um, para o guiar e para o estudar. Graças a uma construção maioritariamente em alumínio, o A110 S pesa apenas 1109 kg, valor que, em conjunto com os 300 cavalos do motor 1.8 Turbo – em posição central, relembro, permitem uma relação peso/potência de 3,7 kg/cv. E para aqueles a quem este número diz pouco, seguem-se os habituais: 4,2 segundos dos 0 aos 100 km/h e 275 km/h de velocidade máxima. A emoção começa assim que se pressiona o botão de arranque do motor na consola central e a tentação de carregar logo de seguida no botão do volante para ativar o modo Sport é, também, imediata. Raramente resisti, admito. Para quê?
O som do motor é garantia de emoções fortes a bordo. Gostei da amplitude sonora que proporciona, cantando como um motor atmosférico, com um agradável ronronar de admissão que, ainda que soe algo artificial, me agradou bastante. A bonita melodia é ainda complementada pela wastegate que pontualmente deixa escapar pressão acumulada, bem como pelo “fogo” de escape que garante que o A110 S não passa despercebido a quem não reparou no do seu laranja. A disponibilidade a baixa rotação é bastante notória – 340 Nm das 2400 às 6000 rpm – ganhando um especial vigor logo a partir das 2500 rpm, altura em que o quatro cilindros começa a mostrar toda a sua alma, assumindo uma entrega de potência que tem tanto de forte como de linear, bem como mostrando que não tem medo de “fazer rotação” até ao corte de injeção.
Não o conduzi em ambiente fechado e controlado, mas tentei explorar, dentro daquilo que são as minhas capacidades e condições disponíveis, algum do seu potencial e posso garantir-vos que estamos na presença de algo muito especial. Escolher um destaque entre os vários que definem a experiência de condução do A110 é como perguntar a uma criança de 7 anos se gosta mais da Mãe ou do Pai, mas tenho de destacar a direção, tão rápida que mais parece guiada pela visão do que pelas mãos. Mas uma coisa é ser rápida, outra é coisa é que essa rapidez se traduza numa reação eficaz do eixo dianteiro, algo a que o A110 S dá resposta com alguma, diria até, indiferença, tal é a facilidade e precisão com que colocamos as rodas da frente onde queremos, mudando de direção com a genica de um mosquito viciado em cafeína. Bem calçado – com Michelin Pilot Sport 5 de medida 215/40 à frente e 245/40 atrás – o Alpine finta a física como que guiado pelos nossos olhos, mais do que pelas nossas mãos.
Nas curvas, como se fosse “a direito”
A caixa de dupla embraiagem de 7 velocidades está mais do que à altura das exigências, dispondo de patilhas fixas atrás do volante. Nas travagens mais pronunciadas, mantendo-se a patilha do lado esquerdo premida, a transmissão Getrag permite reduções múltiplas, ainda que tenha preferido, quase sempre, retirar mais gozo de várias pressões para provocar os rateres e ter um maior controlo sobre a mudança com que abordar as zonas mais lentas do meu percurso de teste, até porque nunca as fiz à velocidade possível, fiz àquelas que achei adequado. Se a eficácia do eixo anterior é garantia de uma abordagem precisa às curvas, um praticamente nulo adornar de carroçaria e a muita aderência lateral garantem que o A110 S passa no ponto mais lento destas a uma velocidade com que muitos outros desportivos podem apenas sonhar. Ainda que longe dos seus limites, sinto que fiz algumas daquelas curvas à velocidade com que normalmente faço as retas que as ligam.
A colocação do motor não só beneficia a passagem da potência ao asfalto quando voltamos ao acelerador como transmite uma sempre agradável sensação de que o A110 é capaz de rodar em relação a esse ponto central, denotando uma agilidade absolutamente irresistível, complementada pelo empurrão dos 300 cv no eixo traseiro que pontualmente ou se provocado, nos permitem sair da curva com um ligeiro desvio de trajetória das rodas de tração, sendo facilmente compensado por um muito ligeiro ângulo de contrabrecagem. Esta liberdade ganha uma nova dimensão se desligadas as ajudas do A110 S, algo que comprovei momentaneamente quando o espaço assim mo permitiu, mas que também confirmou as minhas suspeitas de que a exigência sobe igualmente a novos patamares, com a sensível transição entre trajetória certa e sobreviragem a requerer braços rápidos para controlar as reações mais puras e soltas de tão nervosa máquina. Os travões mostraram, sempre, uma eficácia de desaceleração à altura do também sempre surpreendente poder de aceleração do A110 S.
Depois do A110 S, o A110 R
Não vos sei dizer qual é o automóvel perfeito. Até porque me falta conduzir muita coisa boa que para aí anda. Mas um que seja perfeito, perfeito, até acredito que não exista. E não existe por mais do que uma razão. Por um lado, porque o que é perfeito para um condutor pode não o ser para outro. O Alpine A110 S é, por exemplo, um péssimo automóvel para levar a família a passear. Um Renault Espace será, certamente, bastante melhor, já que o A110 é, neste aspeto, terrível, na verdade. Por outro lado – e reconhecendo não só a necessidade como, antecipadamente, a qualidade do trabalho da marca francesa no desenvolvimento de um futuro modelo elétrico – se este A110 S representa o que de melhor se faz atualmente neste patamar de preço/segmento, dos desportivos na casa dos 100 mil euros, a Alpine já tem o A110 R pronto para aperfeiçoar a perfeição, se é que isso faz algum sentido.
Repito, não tenho dúvidas de que um futuro Alpine elétrico vai ser brilhante. Mas será brilhante se considerarmos que vai ser mais pesado, que se vai fazer ouvir por altifalantes e se tivermos em conta as restrições que lhe vão ser impostas pela eletrificação. Necessárias, urgentes, até, mas em total oposição aos pilares sobre os quais se construiu uma marca como a Alpine. Poderá ser o Alpine ideal, mas não vai, por isso mesmo, ser o Alpine perfeito. Já este A110 S, não sendo, para muitas utilizações e muitas pessoas, perfeito, é-o para quem gosta de automóveis e de conduzir, de sensações puras e viscerais que só um automóvel assim proporciona. E tal como o motor de combustão, cuja triste e progressiva saída de cena compreendo, também os fãs de automóveis estão a desaparecer. O A110 S resiste. Resistamos, também, porque em 2023 o Alpine A110 S é perfeito simplesmente por existir.