Os B.I. dos 6 magníficos da Lancia Martini Racing
E eis-nos chegados ao 3º capítulo da ímpar (e inigualável) associação da Lancia com a Martini Racing no universo dos ralis. Depois de, há dias, termos trazido as propostas de Andrea Bonamore para um desejado regresso da equipa, com um potencial Delta HF Integrale da futura categoria Rally1 – pode ler no texto “… e se a Lancia e a Martini regressassem ao WRC?” – e de termos resumido, de um modo geral, os recordes desta ligação sem paralelo ao nível do WRC – no texto “Os (para já) imbatíveis recordes da Lancia Martini Racing” – vamos agora trazer / relembrar mais alguns dos detalhes destas magníficas macchine italianas.
Lancia Rally 037: O rasteirinho que deu tanta dor de cabeça aos adversários
Com homologação FIA B-210, válida de 2 de Abril de 1982 a 31 de Dezembro de 1990, o Lancia Rally 037 integrou o Grupo B e a classe 12. Contava com um bloco Fiat Twin-Cam (Lampredi) de 4 cilindros DOHC 16V, de colocação central/longitudinal, derivado da unidade antes utilizada no antecessor Fiat 131 Abarth. A versão Evo 1 tinha uma cilindrada de 1.995 cc (ou 2.793 cc, uma vez aplicado o coeficiente 1,4 de homologação, da época), vendo-se depois evoluída para 2.111 cc (ou 2.955 cc) na versão Evo2. Era apoiado por um compressor Abarth R18 Volumex Roots, carburador simples Weber e depois duplo e injecção mecânica Bosch Kugelfisher, associada a uma caixa de 5 velocidades ZF, entre outras soluções mecânicas.
Com tracção traseira, o débito de potência ascendia aos 290 / 315 cv às 8.000 rpm e um binário de 267 Nm às 6.000 rpm para o Evo1, sendo que no Evo2 esse estábulo elevava-se aos 325 / 345 cv, às mesmas 8.000 rpm, e aos 320 Nm às 5.500 rpm. Pesando uns minimalistas 980 kg e uns 20 a 30 kg menos na segunda evolução, o levezinho 037 tinha relação peso potência na ordem dos 3,0 kg por cavalo!
Em termos estatísticos, as suas gerações contabilizam, à data e segundo as estatísticas do portal eWRC-Results, 2.274 inscrições em 1.007 eventos, tendo um rácio de abandonos de apenas 17,9 %. Soma um total de 426 vitórias (42,3 %, ou seja, quase metade das provas onde ingressou) e subiu ao pódio 904 vezes. Contabiliza ainda 1.557 melhores cronos em especiais, o primeiro dos quais no terceiro troço do Rallye dell’Isola d’Elba de 1982.
Estreado em Abril de 1982 no Rally Costa Smeralda, prova do Europeu da altura em que ambos os carros oficiais de Markku Alén e Attlio Bettega desistiram, o 037 só em Julho alcançaria o seu primeiro pódio, através de Adartico Vudafieri, 3º classificado no Rally Il Ciocco e Valle del Serchio, havendo que esperar por Outubro desse ano para ver o novo kart dos ralis – o anterior era o também saudoso Lancia Stratos – a ocupar um 1º lugar, o que aconteceria no Pace Petroleum National Rally, uma mera prova do Nacional do Reino Unido, através de Markku Alén, isto após o descalabro registado no imediatamente anterior Rally Sanremo, corrido em casa e onde todos os Lancia oficiais abandonaram!
Se essa mini-temporada no WRC foi para esquecer (ou para aprender), a seguinte revelar-se-ia o oposto: o Lancia Rally 037 vencia o Monte-Carlo de 1983, com uma dobradinha de Walter Rohrl (1º) e Markku Alén (2ª), num Mundial de Ralis em que o modelo acumularia mais umas quantas vitórias (Córsega, Acrópole, Nova Zelândia e Sanremo), entre outros resultados que elevariam a associação Lancia Martini Racing ao seu primeiro título conjunto de Construtores, de um total de 7 troféus maiores do WRC. O modelo daria à Lancia o vice-campeonato do ano seguinte e o 3º lugar em 1985.
Lancia Delta S4: La Bestia que não pôde ascender ao estrelato
Com homologação FIA B-276, válida de 2 de Novembro de 1985 a 31 de Dezembro de 1991, o Lancia Delta S4 integrava, igualmente, o Grupo B e a classe 12. Tinha um motor Abarth 233 ATR 18-S de 4 cilindros DOHC 16V, de colocação central, com 1.759 cc (2.463 com o tal coeficiente de 1,4), com um turbocompressor KKK K27, combinado com um compressor Abarth Volumex R18, 2 intercoolers ar/ar e injecção electrónica multiponto Weber/Magnetti Marelli, associada a uma caixa de 5 velocidades Hewland, entre outros mimos.
Com tracção integral, o conjunto tinha um débito de potência de 450 cv às 8.000 rpm e um binário de 392 Nm às 5.000 rpm. Isto em 1985 pois, no ano seguinte, evoluia para os 480 cv às 8.400 rpm e 451 Nm. Só que isto eram os valores declarados, sendo que toda a gente sabia (mas não queria ver) que os Grupo B, nomeadamente os da última geração, debitavam muito mais do que isso, estimando-se que os últimos Delta S4 tivessem bem mais de 550 cv! Pesando algo na região dos 1.000 kg, nomeadamente pelo tipo de peças utilizadas, com muito recurso a elementos em kevlar e fibra de carbono, entre outras soluções, tal representava uma relação peso potência (oficial) de 2,1 kg por cavalo!
Com uma carreira desportiva interrompida no WRC no final de 1986, pela abolição dos Grupo B da alta roda dos ralis mundiais, o Delta S4 contabiliza apenas uma participação em 105 ralis, representada por 179 equipas, também registando um baixo rácio de desistências, de apenas 13%. Saboreou o champanhe da vitória em 43 ralis (41,7% das vezes em que entrou num evento) e subiu ao pódio com 69 equipas (39,0%). Soma os melhores tempos em 334 classificativas, conjunto de scores alcançado, em grande parte, em ambiente WRC, mas o primeiro melhor crono de sempre foi registado na PEC 1 do nosso Rally Lois Algarve de 1985, prova lusa do Europeu de Ralis que a Lancia Martini Racing usou para mais uma sessão oficial de testes, então inscrevendo Markku Alén. Estavámos no mês de Outubro, em vésperas da sua homologação oficial para o Mundial de Ralis!
Mas a estreia do Delta S4 em competições fizera-se sete meses antes, no mesmo palco do Lancia Rally 037, o Rally Costa Smeralda e, também aqui, pelas mãos de Alén, mas apenas como “Carro 0”. Em Julho, o piloto finlandês registaria a primeira vitória oficial de La Bestia no Rally Colline di Romagna. Depois, já devidamente homologado para o WRC, deslumbrou meio mundo no Lombard RAC Rally de 1985, impondo-se na estreia com uma saborosa dobradinha, com Henri Toivonen na frente de Alén. No ano seguinte vencia 4 das 13 provas da temporada, mas uma série de infortúnios impediu o modelo de conquistar esse ceptro mundial, ou qualquer outro, pois em 1987 era um dos modelos banidos do WRC.
Lancia Delta HF: O devorador de campeonatos
Bem menos elaborados tecnologicamente eram os Delta HF 4WD de Grupo A, viaturas que, de repente, tiveram de assumir em 1987 um papel de protagonistas que, nas épocas anteriores, estive a cargo dos monstros do Grupo B. Foi um necessário passo atrás, a bem da saúde do Mundial de Ralis que, de repente, ficava com uma imagem bastante enegrecida pela incapacidade / incompetência em saber lidar com a meteórica ascensão dos níveis de potência dos carros desse agrupamento, sem o devido acompanhamento no domínio da segurança.
A Lancia homologava, assim, o seu minimalista Delta HF para figura de proa da marca do Mundial de Ralis, fazendo-o quer em Grupo A, quer no complementar Grupo N (homologação A-5324 e N-5324, de 2 de Janeiro de 1987), viatura que nos anos seguintes, por consequência do acompanhamento tecnológico mais aturado e acompanhado por parte da FIA, ia evoluindo para 3 propostas complementares, cada vez mais competitivas: Integrale 8V (homologação A/N-5355, válida a partir de Março de 1988), Integrale 16V (A/N-5394, de 2 de Outubro de 1989) e, por fim, o Integrale 16V “Evoluzione” (A/N-5448, de 2 de Janeiro de 1992).
De base comum, os sucessivos Delta HF contavam com um bloco turbo de 4 cilindros de 1.995 cc, com 8 válvulas nas duas primeiras versões, duplicando em número nas seguintes. Cada vez mais aperfeiçoado e empurrado pelos sucessivos sucessos desportivos, o modelo italiano evoluía em potência, subindo dos 250 cv da versão 4WD até aos 295 cv nos restantes (teoricamente os carros de Grupo A não poderiam ultrapassar os 300 cv, pelo que os valores ficavam sempre num qualquer limiar inferior) – e também em binário, dos 330 Nm às 4.000 rpm do 4WD, até aos 430 Nm às 4.500 rpm do “Deltona”. Tracção integral em todos eles, tendo o 4WD caixa de 5 velocidades, sendo de 6 relações nos restantes, os conjuntos também beneficiavam dos sucessivos aligeiramentos em peso, dos 1.200 kg do inicial, aos 1.132 kg do mais imponente dos Delta HF, isto apesar das evoluções e do crescendo de tecnologias neles empregues.
No seu conjunto e fruto do seu sucesso à escala global, estas 4 gerações do quase imbatível Delta HF registaram um impressionante volume de 17.486 equipas inscritas em nada menos do que 7.555 provas, tendo alcançado 1.053 vitórias, num rácio de 13,9%, para além de 2.699 subidas a pódios e 5.914 melhores tempos em troços cronometrados. A sua enorme fiabilidade fez com que apenas registasse 18,5% de desistências entre todas essas participações.
Mostrado publicamente no final de 1986, no Rallye del Sestrieri, como “Carro 0” conduzido por Alessandro Fiorio, piloto da equipa Jolly Club, o Delta HF 4WD da Lancia Martini Racing viria a impôr-se na sua prova oficial de estreia, o Rallye Monte-Carlo de 1987, com “Miki” Biasion a bater Juha Kankkunen na luta pelo 1º lugar, encimando um lote de 16 unidades desta nova arma de ralis italiana, no qual se integrava o melhor dos Grupo N, o 4WD do francês Bertrand Balas. Como curiosidade, seriam 32 os Delta HF 4WD presentes no Rallye Sanremo, a jornada italiana do WRC desse ano, entre dezenas de outros que começaram a invadir os múltiplos campeonatos de ralis italianos, nacionais e regionais, facto que rapidamente se alastrou muito além das fronteiras do seu país de origem. Foi uma estreia vitoriosa da nova arma de Grupo A para o Mundial de Ralis, garantindo o primeiro de 6 troféus consecutivos de Construtores, garantindo 8 vitórias em 13 provas, entre outros resultados, e também o primeiro de Pilotos, através da dupla finlandesa Juha Kankkunen / Juha Piironen.
Em Março de 1988 a equipa Lancia Martini Racing estreava o Delta HF Integrale 8V, a que seria a sua primeira evolução, fazendo-o no Rally de Portugal, através de 3 carros oficiais, mais uns quantos para equipas semi-privadas, mantendo-se a estrutura satélite da Jolly Club com os 4WD. Resultado: vitória de “Miki” Biasion à geral e no Grupo A e de Jorge Recalde no Grupo N, prova que Carlos Bica (Delta HF 4WD, de Grupo A) terminou no 9º lugar da geral e segundo melhor português. No final da temporada em que esta versão foi usada festejava-se em dobro, com a conquista de ambos os troféus de Construtores e Pilotos, pelos italianos Massimo “Miki” Biasion / Tiziano Siviero, após uma época onde somaram 10 vitórias em 13 ralis (9 das quais do novo 8V).
A versão com o dobro das válvulas teria o seu baptismo de fogo no Sanremo de 1989, sendo, de novo, o local “Miki” Biasion a dar alegrias às também italianas marcas Lancia e Martini, colocando o novo Delta HF Integrale 16V, numa inédita base vermelha – a tal tentativa que, visualmente, resultava muito mal em jornais a preto e branco – no lugar mais alto do pódio, obliterando o acidente protagonizado por Didier Auriol, no segundo carro inscrito pela Lancia Martini Racing. Conjugando os resultados deste novo 16V com o anterior 8V, o Delta somava mais uma dupla conquista, com o troféu de Construtores para a Lancia (7 vitórias num calendário de 13 ralis) e o de Pilotos, de novo, para Biasion / Siviero, para em 1990 só alcançarem a taça reservada aos Construtores (6 vitórias em 12 ralis). Acrescente-se que o português Carlos Bica só haveria de estrear o seu 16V no “Vinho do Porto” do ano seguinte, dois meses após Jorge Pontes ter trazido para terras lusas um dos primeiros 16V portugueses, o que aconteceu no Rali Sopete/Póvoa de Varzim. Já em 1991 voltava-se à dupla conquista, com o troféu de Construtores (5 sucessos em 14 ralis), com Kankkunen / Piironen a bisarem nos Pilotos.
Finalmente, houve o “Deltona” – a versão mais apimentada Delta HF Integrale 16V “Evoluzione” – carro que não fugia à regra, também vencendo a sua prova de estreia, o Monte-Carlo de 1992, através de Didier Auriol, que ficava 2 lugares à frente da unidade idêntica conduzida por Juha Kankkunen. No final da temporada garantia-se o tal 6º troféu consecutivo de Construtores, após 8 vitórias num ano de 14 ralis, entre outros resultados. Curioso é o facto de 6 delas terem sido de Auriol, mas isso não o elevou além de 3º entre os Pilotos, no final dessa que foi a última temporada do Delta HF – e da associação Lancia Martini Racing – no Mundial de Ralis!
Tal como se tem referido nos textos anteriores sobre esta temática, Portugal também teve a sua quota-parte na história da Lancia nos ralis, no que será o tema da próxima edição deste já extenso dossier dedicado à associação transalpina.
Fotos: Garagem / Jota Pê; Oficiais/ Artcurial; I Love Lancia (Facebook); Clube Lancia Delta Integrale Portugal (Facebook)