Mobilidade para todos. Preferencialmente…
Sou fã de automóveis, bem mais do que de bicicletas, mas escrevo este texto enquanto cidadão, não como jornalista automóvel, entusiasta das quatro rodas ou pontual ciclista. Isto porque considero que temos, efectivamente, de arrumar a casa. E por casa entenda-se a estrada, a casa de todos nós enquanto pessoas com diferentes necessidades e interpretações de mobilidade. Seja por motivos profissionais ou de lazer, a minha forma de mobilidade de eleição é o automóvel. Parece-me óbvio. E é a partir do lugar do condutor que me tenho vindo a aperceber de que, para favorecer os mais necessitados, estamos não só a dar-lhes o que merecem, como a tirar a quem já o tinha. Não está certo.
Se temos efectivamente de promover uma mobilidade sustentável, nomeadamente através da construção de ciclovias e outras especificamente dedicadas seja lá a que forma de mobilidade for, aprovo a iniciativa. É para o bem de todos. Mas perdoem-me a sinceridade, se existe uma via especialmente construída para bicicletas, de que serve um Código da Estrada que contém um sinal vertical, prioritário sobre as regras, azul, bem redondinho, sinónimo de “Pista obrigatória para peões e velocípedes”, quando o mesmo código – pelo qual todos nos guiamos, peões inclusivamente – prevê, igualmente, na alínea 1 do artigo 78º o seguinte: “Quando existam pistas especialmente dedicadas a animais ou veículos de certas espécies, o trânsito destes deve fazer-se PREFERENCIALMENTE por aquelas pistas.” Em que ficamos? Faz-me lembrar uma “rotunda” que durante anos existiu perto da minha casa. À chegada de uma das entradas tinha sinal de sentido giratório obrigatório, mas dentro da “rotunda”, quem lá circulava encontrava sinais de cedência de passagem. Foi um almoço bem regado nesse dia: “A praça é redonda? Mete-se um sinal de ‘rotunda’! Mas quem lá circula leva com cedência de passagem. Olhe desculpe, o que tem para sobremesa? Pode ser, com cheirinho, por favor.” Era o festival da buzinadela e do palavrão. Bons tempos!
Este é o problema. A ambiguidade, neste caso, do preferencialmente. Um automobilista, interpreta que o ciclista deve, uma vez que existe e está sinalizada como tal, usar a ciclovia. O ciclista, no seu direito, prefere não a usar. Não saímos disto e na Estrada do Guincho, a um sábado às 11 horas da manhã, a fila prevista na lei estende-se por largas dezenas de metros, quando por vezes o vazio da ciclovia se prolonga, esse então, por grandes centenas de metros. Eu também gosto de pensar que tenho o talento do Colin ou do Ayrton, mas o meu nome é Isaac, não tem “Mc” antes e a letra que repete é o “a”, não é o “n”. Muito menos o “s” ou o “c”. Também muitos de vocês, ciclistas apreciadores do Guincho, não são o Agostinho, nem o Merckx. Sobre este assunto, falei com amigos ciclistas que me chamaram a atenção para algo que, efectivamente, nunca me passou pela cabeça. Quando a ciclovia está cheia de crianças e de pessoas a fazer as suas caminhadas e corridas, torna-se impossível. Sem dúvida, reconheço que é um problema e assumo o meu erro ao nunca ter pensado nisso. Fui egoísta, admito, e a última coisa que queria era ver uma criança a sofrer as consequências de um acidente com uma bicicleta. Mas volto a colocar-me ao volante do meu carro e a pensar em quem está em cima de uma bicicleta numa via como a Estrada Marginal. É urgente a criação de uma via para ciclistas ali. É uma estrada perigosa, até para automobilistas, uma vez que não tem faixa separadora central, agora imagine-se para quem pedala. Mas quando lá estiver, vai ser preferencialmente usada ou preferencialmente evitada?
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Agora que há cada vez mais vias dedicadas a velocípedes, devíamos de começar a pensar em alterar a lei. Se até agora a lei prevê, ainda que de uma forma preferencial, que mesmo na existência de uma ciclovia, o ciclista pode usar a estrada, nem precisando de se colocar junto da berma e podendo partilhá-la com outro ciclista, acho que no futuro faz sentido rever-se a lei. Fez sentido partilhar, tirando a uns para o bem de todos, mas se agora há condições, devolvam o que retiraram a quem cedeu parte do seu espaço, fomentando e obrigando a que se utilizem as ciclovias, sempre que possível, sempre que utilizadores mais vulneráveis não estejam em risco. E estes são, no caso particular da Estrada Marginal, os ciclistas. São eles que estão em perigo e embora não pareça, estas minhas palavras são, principalmente, para o vosso bem. Espero, efectivamente, que seja esta a mensagem que passe, embora reconheça que não gosto de saber que quando há uma ciclovia, o que há, no fundo, são duas ciclovias e que numa delas podem, também, circular automóveis e motos. Um pouco como aquela malta que tem um sinal de estacionamento proibido em frente ao seu portão de garagem e coloca lá o seu segundo carro. “Isto é meu”. Uma vez, sem querer, fiz este teste a uns vizinhos meus ao parar o meu carro junto do seu portão enquanto aguardava pela minha namorada. Chega a senhora e manda-me para tirar o carro. Perguntei se ia aceder à garagem. Disse-me que não, mas que queria pôr o carro ali. Porque o portão é dela. Pois. Eu também quero muita coisa. Naquele dia, como nem a senhora, nem o marido, me pareceram maiores do que eu, nem chegaram num carro com pirilampos, tiveram de estacionar noutro sítio. Num lugar de estacionamento, como aqueles que eu uso quando vou sair do carro, imagine-se.
Mas para os que me vão apontar o dedo e acusar de me achar um “vigilante”, cidadão exemplar, algo que assumidamente não sou, reconheço que há uns dias questionei um ciclista que passou três semáforos vermelhos seguidos. Perguntei-lhe apenas se a Go Pro estava a gravar quando passou os semáforos. Foi simpático, até. Não foi agressivo e mandou-me apenas chamar a polícia, assim meio em tom de Vasco Santana: “Chama a polícia, seu palerma!” No fundo, deu-me a resposta que eu merecia, porque não sou polícia, mas também aquela que eu sabia que ia ter: o código é para cumprir quando nos dá jeito, quando não dá, porreiro, desde que não esteja lá a polícia. É como nas passadeiras de peões: em cima de uma bicicleta, diria que não são peões. São ciclistas. Por isso, tomei uma decisão: como a ciclovia costuma estar vazia, vou utilizá-la para o meu próximo ensaio, vou seguir por ali e ultrapasso os “patos” todos que não querem pisar o traço contínuo para ultrapassar as bicicletas na estrada. Desde que a polícia não veja, sou capaz de me safar!
Exemplo espanhol: não, muchas gracias!
Já em Espanha, segundo apurei, desde que reunidas as condições de segurança, o condutor pode pisar o traço contínuo para ultrapassar um ciclista. Isto é, só, estúpido. O que são “condições de segurança”? Eu vou dizer que sim, “estavam reunidas”, e o senhor agente da Guardia Civil vai dizer, em espanhol, claro: “Pois, pois. Aqui tem o valor a pagar. Passe bem, Sr. Condutor.” Passo bem o caraças, se for a Espanha quem não passa nada sou eu. Não concordo. Erros já todos fizemos e já o pisámos, mas uma lei que prevê que se possa fazê-lo, parece-me demasiado mau. Os tempos mudam, bem sei. A pandemia fez-nos mudar muitos hábitos, principalmente ao nível do distanciamento social, algo a que os fãs de jogging também aderiram. Correr, actualmente, é na estrada. Detesto correr, e detesto, ainda mais, levar com um retrovisor no cotovelo. É por isso que não corro. Para poupar os cotovelos.
Esta recente e saudável moda de pedalar a toda a hora faz-me lembrar, igualmente, a introdução da permissão de condução de motociclos até 125 cc a quem tem licença B. Impera uma certa anarquia no trânsito dos veículos motorizados de duas rodas. Muitos não querem aceitar o conceito de faixa de rodagem e no meio de duas há sempre outra, normalmente identificada por um espaço vazio de 50 centímetros. Quando vou no meu carro, gosto de lhes facilitar a passagem. A toda a malta das duas rodas. Se têm uma mota ou bicicleta, que usufruam das suas vantagens. Não me custa nada facilitar um pouco para que caibam e se cheguem à frente numa fila. Mas por favor, façam-no em condições. Não venham a mandar “rateres” desde há 200 metros porque nem abrandar querem e muito menos venham aos “zigue-zagues”, sempre a mudar de faixa, como se a malta que está mais à frente conseguisse adivinhar o que vão fazer de seguida. Porque se vão fazer uma ultrapassagem, têm de mudar de faixa. Se duas faixas no mesmo sentido estão ocupadas, passar pelo meio, junto aos retrovisores dos carros, não é uma ultrapassagem, é uma inconsciência. No entanto, se partirem os retrovisores à malta, os joggers agradecem, principalmente os seus cotovelos.
Enquanto automobilista, tenho de aceitar que os ciclistas podem andar na estrada, mas se a ciclovia estiver vazia, usem-na, PREFERENCIALMENTE. Eu prometo fazer a minha parte. Se lá estiverem crianças, adaptem a velocidade ou, não hesitem, utilizem a estrada. Vou respeitar-vos. Mais vale criar uma fila de trânsito do que ferir alguém. Precisamos de arrumar “a casa”, usar menos vezes a palavra sustentável e fazer algo por isso. Eu nem na ciclovia, nem fora dela e tenho de resolver esse problema rapidamente. Mas acima de tudo, essa arrumação deve passar pelo Código da Estrada. Não sei qual a solução para isto tudo, mas por vezes acho tudo muito ambíguo. Um sinal vertical, azul e circular, de obrigatoriedade não obrigatória. Gozem o que quiserem, mas a regra número um, para peões, ciclistas, automobilistas, vegetarianos e “terraplanistas” é o bom senso. Na dose certa, só faz bem. Bem, no caso dos últimos, talvez ler uns livros ajude, mais do que o bom senso. Ou sair de casa, vá.