Rallye Côte d’Ivoire 1989: E um Grupo N venceu um rali do WRC
Estávamos a 2 de Novembro de 1989, data em que a dupla francesa Alain Oreille / Gilles Thimonier subiu ao pódio final como vencedora da 21ª edição do demolidor Rallye Côte d’Ivoire, aos comandos de um pequenino Renault 5 GT Turbo. Particularidade: é um feito que ficou registado para sempre como a única vitória à geral de um carro de Grupo N, no Campeonato do Mundo de Ralis!
Desenrolando-se ao longo de cinco dias, a jornada do Costa do Marfim foi nesse ano pontuável para o WRC, condão que teve de 1978 a 1981 (Mundiais de Pilotos e Construtores) e em 1977 e de 1982 a 1992 (só Pilotos), bem como para a então Taça FIA para Pilotos de Carros de Grupo N. Mas poucas eram as marcas oficiais que gostavam da jornada baseada em Abidjan, outrora capital deste país africano, para esta muito ímpar prova que, à semelhança do Rali Safari, se estruturava em Etapas longas, do tipo tiradas únicas, divididas por Controlos Horários de Passagem, algo que hoje podemos encontrar nas Etapas-Maratona, semelhantes às usadas nas grandes provas de off-road, tipo Dakar, e não nas mais tradicionais Provas Especiais de Classificação (PEC) cronometradas, da época, vulgo Classificativas, algo que hoje conhecemos como Especiais (ou ES).
Preparado e inscrito pela DIAC/Simon Racing, o minimi mas surpreendentemente robusto R5 GT Turbo, com o nº 9 nas portas e matrícula “6876 SS 842”, soube ultrapassar, com a mais elevada distinção, todas as ratoeiras dos nada menos do que 3.528 km (!!!) de um percurso hiper-destrutivo desenhado para o evento de 1989, quase todo ele em estradas – ehhhhhp – melhor dizendo, caminhos – e ainda assim estou a ser bonzinho – em terra batida e muito, muito enlameada.
O levezinho que bateu alguns pesos-pesados dos ralis
Equipado com um bloco de 4 cilindros em linha, com 1.397 cc, montado transversalmente e dotado de turbo, o pequeno francês debitava qualquer coisa como 190 cv às 6000 rpm, ainda que a Renault, na altura, não quisesse ir além dos 150, e 151 Nm às 4500 rpm, valores que conjugados com o seu peso pluma de 775 kg, permitido para Grupo N, fazia voar o levezinho, em especial nos ralis de asfalto.
Não foi essa a estratégia para este Costa do Marfim, integralmente em percursos de terra batida, mas tal serviu-lhe para não se enterrar nos múltiplos lamaçais com que se deparou ao longo do percurso, mesmo se apenas contava com tracção às rodas da frente. Para ver (ou recordar) como Oreille se desenvencilhou de hercúlea tarefa convidamo-lo a assistir a este vídeo resumo dessa edição.
Inscritos pelas estruturas semi-oficiais dos mais reputados construtores da altura – Audi, Nissan/Datsun, Toyota, Lancia e Mazda, entre outros – os mais competitivos carros de Grupo A da concorrência foram ficando pelo caminho, tal como muitos outros, ao ponto das 60 equipas que se apresentaram à partida, apenas 7 terem alcançado o pódio final. Feitas as contas, o R5 impôs-se por mais de 3 horas a um Mitsubishi Starion Turbo e a uns quantos Toyota Corolla sobreviventes, mais um Peugeot 205 GTi que ficou a umas expressivas 7 horas de distância. E pronto, mais nenhum para contar a história completa!
Fruto dos resultados alcançados na categoria, Oreille e o R5 GT Turbo viriam a conquistar as Taças FIA de Grupo N de 1989 (4 vitórias, incluindo esse scratch absoluto na Costa do Marfim) e de 1990 (1 vitória num rali desse ano bastou), batendo propostas bem mais musculadas de outros concorrentes, carros de tracção integral como o Ford Sierra RS Cosworth, Lancia Delta HF Integrale, Mazda 323 4WD, Mitsubishi Lancer VR-4 ou Subaru Legacy RS.
E em 2022… What if?!
Hoje a realidade é outra e pelo que já se viu em Monte-Carlo, na Suécia, Croácia, onde os novos (e já híbridos) Rally1 se mostraram muito rápidos, pelo que muito dificilmente os actuais (e ainda não híbridos) Rally2 poderão alguma vez impor-se-lhes. Precisávamos de assistir a uma verdadeira hecatombe entre os três construtores que inscrevem os Puma, Yaris e i20 Rally1 para assistir à vitória absoluta de um dos múltiplos Rally2 que populam nas subcategorias.
Com três provas do WRC 2022 corridas até à data, os melhores Rally2 ficaram sempre – e curiosamente – na 7ª posição, quer no asfalto gelado do Monte-Carlo, na neve da Suécia, ou no ensopado asfalto da Croácia. Nos dois primeiros casos foi o Skoda Fabia Rally2 Evo de Andreas Mikkelsen o melhor, mas a 11 minutos e 33,8 segundos do Ford Puma Rally1 de Sébastien Loeb na jornada monegasca e, depois, a 7 minutos e 11,1 segundos do Toyota GR Yaris Rally 1 de Kalle Rovamperä no rali nórdico. Já no muito traiçoeiro / enlameado / escorregadio asfalto croata o “melhor dos outros” foi o Citroën C3 Rally2 de Yohan Rossel, a 10 minutos e 1 segundo dos GR Yaris Rally 1 de Rovamperä.
Outra curiosidade, igualmente peculiar, aconteceu nessa prova croata, quando um Ford Fiesta Rally3 – sim, a versão imediatamente abaixo do popular modelo da M-Sport – terminou uma das especiais com o 8º melhor tempo absoluto, sendo apenas batido por seis Rally1 e um Rally2 (este com o 6º melhor crono). O surpreendente feito, ainda que alcançado sob condições muito especiais, ficou registado nos anais da disciplina, tendo como protagonista o jovem (20 aninhos) finlandês Sami Pajari.
Segue-se, no alinhamento mundialista, o Vodafone Rally de Portugal (19 a 22 de Maio), naquela que será a primeira jornada do ano em pisos de terra, onde as novas máquinas híbridas do WRC 2022 irão demonstrar o patamar em que se encontra a sua fiabilidade e robustez. A começar logo pela etapa inaugural, com passagem por troços como a Lousã, Góis, Arganil e Mortágua, quatro emblemáticas Especiais que tantas histórias encerram nas diferentes versões em que já foram desenhadas / usadas no nosso rali maior, a que se seguirão mais dois duros dias nuns quantos icónicos palcos, que se vão mostrar mais ou menos demolidores consoante os estragos das primeiras passagens e a clemência (ou falta dela) do S. Pedro, aquele factor extra que o nosso rali maior por vezes esconde.
Claro que no mundo dos ralis não há impossíveis. Ainda que sob determinadas e muito específicas condições, Oreille e o R5 GT Turbo provaram isso mesmo, na Costa do Marfim!
Fotos: Oficiais / Renault e Historique Rally Bandama (blog)