Mustang “Bullitt”: 3,74 milhões de dólares por um ícone do cinema
Não deve haver petrolhead que se preze que nunca tenha assistido ao filme “Bullitt”, película intemporal que integra aquela que é a primeira – e eventualmente a mais icónica – cena de perseguição automóvel de sempre do cinema. Protagonizada pelo actor Steve McQueen, ali no papel do ‘Tenente Frank Bullitt’, é aos comandos de um certo Ford Mustang GT, verde (a cor original é mesmo ‘Highland Green’) de 1968, que durante uns intermináveis 10 minutos deambula a velocidades estonteantes pelas ruas de San Francisco, nos EUA, atrás dos maus da fita!
Estreado a 17 de Outubro de 1968 no grande ecrã, pelas mãos da Warner Bros., “Bullitt” mantém-se, desde então, como “a referência” entre as películas de acção com cenas de perseguição automóvel, tendo servido de inspiração a outras variações do tema, das décadas seguintes. Exemplos são muitos, mas destaco “Os Incorruptíveis Contra a Droga” e “Corrida Contra o Destino” (ambos filmes de 1971), “Os Bons e os Maus” (1977), “O Dueto da Corda” (1980), “Ronin” (1998), ou o também eterno “60 Segundos” (2000), as de toda a saga “007” e ainda os mais recentes franchises “Jason Bourne”, “John Wick”, sem esquecer, claro está, o conjunto “Velocidade Furiosa”!
Conquistando vários prémios de referência – entre um Óscar para a ‘Melhor Edição’ e uma nomeação para ‘Melhor Som’, bem como várias nomeações para os BAFTA – esta realização de Peter Yates ficou para a história pelo ineditismo da dinâmica das imagens recolhidas, filmadas pelas ruas daquela metrópole, com câmaras montadas fora e, principalmente, lá dentro daquele que ficaria para a história como o Mustang “Bullitt”, exibindo-se ao vivo as habilidades ao volante do icónico e versátil actor, nascido Terence Steven McQueen.
O ‘559: do nascimento até ao segredo de família
No BI desta viatura constava número de série (VIN) “8R02S125559”, referindo-se o “8” ao ano de construção (1968), o “R” ao código da fábrica de San Jose (California), o “02” por ser um fastback de 2 portas e o “125559” como novo nº de série à entrada da fábrica de San Diego (“S”). No exterior destacava-se a cor Highland Green e no interior os estofos – ditos “de luxo” – em vinil preto. Ainda sem saber que viria a ser um protagonista de excelência do grande ecrã, este então Ford Mustang GT ficaria pronto a 9 de Janeiro, seguindo depois para o representante de Los Angeles, que depois o venderia a 11 de Março aos estúdios da Warner Bros, junto com uma segunda unidade (VIN “8R02S125558”).
No filme usaram-se, por isso, dois carros praticamente idênticos, mas o principal, chamado de hero car e o usado na maioria das cenas do actor carinhosamente apelidado “The King of Cool”, levou uns pozinhos adicionais: umas jantes de 15 polegadas American Racing e pneus de competição (Dunlop à frente e Firestone GP Indy atrás) para um look mais mauzão, uma grelha escurecida e uma pintura escovada aqui e ali (retirando-se os logos GT), dando-lhe um ar usado muito mais realista, escape específico, volante tipo Shelby e amortecedores Koni, entre outras, bem como as decorrentes da necessidade de montagem de câmaras a bordo – a tal estreia no mundo do cinema – sendo-lhe incorporadas no interior um conjunto de barras transversais e respectivos reforços, que permitiram a captação das imagens hoje icónicas.
Também o seu motor V8 de 6,4 litros foi mexido em potência e sonoridade, tornando-se imediatamente identificável pelos mais fervorosos cinéfilos, ou pelo menos pelos que contam com uma alma petrolhead, complementado, na perfeição, pela hoje obsoleta caixa de 4 velocidades manual.
Outra alteração de pormenor foi a matrícula, usando-se no filme a placa “JJZ 109”, em substituição da original “VVE 590”, ambas do Estado da California. Hoje conta com uma placa personalizada “BULLITT” atrás, do estado de New Jersey, e à frente outra da sua certificação por parte do norte-americano “National Historic Vehicle Register”. Foi o 21º automóvel na história deste organismo a obtê-la.
Com o filme nos cinemas, os dois carros viriam a ter teriam destinos diferentes: um, o ‘558’, teria ido para a sucata, dados os consideráveis estragos que lhe foram infligidos nas filmagens, mas hoje há rumores que o põem no México; o segundo, o ‘559, o tal hero car, foi comprado por Robert Ross, empregado da produtora, por meia dúzia de patacos. O valor não é conhecido mas na mudança de mãos seguinte, para o Detective Frank Marranca, de New Jersey, ter-se-ão pago uns meros 6.000 dólares!
Em 1977, altura em que o “Bullitt” já era da família Kernam, adquirido três anos antes por quase metade daquele valor (fala-se – imagine-se… – em 3.500 dólares!!!), o próprio McQueen terá tentado comprá-lo através da sua produtora Solar Productions Inc., embora sem sucesso nas suas múltiplas insistências.
Embora sabendo que tinham um tesouro nas mãos, os Kernam nunca quiseram fazer show-off, usando-o nas deslocações do pai Robert para o trabalho e da mãe Robbie para a paróquia, mantendo um very low profile sobre a obra de arte lá de casa. Até ao ponto de, mais tarde, o guardarem na garagem, tornando-o numa espécie de segredo de família!
Isto até 2001, ano em que a Ford, pretendendo reeditar o Mustang “Bullitt”, com uma nova versão GT, fez uma primeira démarche junto de Robert e Sean Kernam (o filho), sugerindo-lhes a reabilitação do seu ídolo de 4 rodas. Só que, devido ao estado saúde de Robert, o processo viria a arrastar-se durante mais 17 longos anos e só ganhara momentum após a sua morte. Em memória do seu pai, Sean e a Ford, que em 2018 lançava um terceiro Bullitt Edition Mustang, para o 50º aniversário do modelo, terminavam, finalmente, a reabilitação do ícone do cinema.
O Mustang “Bullitt” original de 1968 voltava, assim, a fazer ecoar, com enorme estrondo, o poderoso ronco do seu V8, surgindo ao lado daquele seu descendente em inúmeras acções de charme da Ford e em festejos da icónica marca Mustang. O modelo que mantinha toda a patine dos tempos e parte significativa das mazelas que sofrera durante as filmagens de há já 5 décadas, junto com algum caruncho decorrente da idade.
… só que, eis que senão quando, o “Bullitt” vai a hasta pública!
Sem que ninguém o esperasse, nos primeiros dias de 2020 o carro era anunciado como estando para venda em leilão, no evento “Mecum Kissimmee 2020”, da norte-americana Mecum Auctions. Foi a 10 de Janeiro que, uma vez mais fazendo-se ouvir a irreverência do seu V8, frente a milhares de pessoas que o esperavam, entre potenciais licitadores, simples curiosos e amantes do modelo ou da famosa película, o Mustang “Bullitt” mudou de mãos pela 5ª vez na sua vida.
O Mustang “Bullitt” viria a ser arrematado por 3,4 milhões de dólares, entretanto convertidos em 3,74 milhões após aplicação de taxas, sendo a cereja em cima de um bolo de um conjunto de outros elementos onde constam vários documentos, entre registos originais e correspondência trocada pelos proprietários e interessados. Esta unidade tornou-se assim, no mais caro Mustang de sempre, vendido em leilão e fora dele!
Se quiser assistir a este leilão, clique no vídeo abaixo e veja como, em apenas 10 segundos, se duplicou a base de licitação e em pouco menos de 10 minutos se atingiu aquele máximo histórico, hoje recorde de venda para um exemplar Mustang.
Mesmo que tenha consigo um pé-de-meia substancial terá que aguardar que o novo proprietário, cujo nome se mantém no segredo dos deuses, o queira revender, algo que não se espera para tão breve quanto isso. Mas nunca se sabe, pois o dinheiro é algo que gosta de se mexer de um lado para o outro… e o Mustang “Bullitt” não é exemplar que goste de estar quieto numa garagem!
Fotos: Mustang Bullit: Mecum Auctions; Ford; Warner Bros.