95 g/km de CO2: O “não estou nem aí” no resto do mundo! – Parte 3
Como aqui na ‘Garagem’ se tem referido (ver aqui a Parte 1 e a Parte 2 deste mini-dossier “95 g/km de CO2”), nesta UE na passada 6ª feira reduzida a 27 países, a crua realidade é a que já se nos apresenta neste biénio 2020/21, até antecipando outras já anunciadas evoluções agendadas para daqui a 20 anos. Já entre os restantes países do Velho Continente e o demais planeta a coisa é outra, não parecendo, sequer, que vivemos todos nesta mesma esfera achatada nos pólos. Senão vejamos!
No limiar da total implementação dos contornos do Brexit e em face do que se tem decidido ultimamente por terras de Sua Majestade, o Reino (cada vez menos) Unido não me surpreenderia se até pudesse vir a alinhar com os EUA na relativização do tema das alterações climáticas, aliando-se ao portento norte-americano que, no seu (quase) todo – excepção a 10 dos 50 estados, com a Califórnia como barómetro, que se afirmam como “ZEV States” – não está nem aí para estas coisas esquisitas do ambiente. Nahhhhhhhh!
As Américas, do Norte e do Sul (com o Brasil à cabeça, que agora alinha em quase tudo com o aliado a norte da linha do equador), a Ásia e a Oceânia servirão, assim, de mercados onde as marcas poderão escoar a produção de carros com motores térmicos e, ao mesmo tempo, respeitar os acordos petrolíferos que ainda vigoram, com muitos dos países que os compõem com elevados interesses ainda instalados (como se leu nas entrelinhas na Cimeira de Madrid).
Já continentes como a África, o Ártico e a Antártida mantêm-se entre as principais vítimas desta arriscada aposta, tal como os pequenos arquipélagos que, a muito custo, se mantêm à tona de água dos grandes oceanos, assistindo, impotentes, ao poderio de quem parece mandar no destino do planeta.
Só como exemplo, de acordo com um estudo da Agência Internacional de Energia (IEA), com números de 2016 (são as estatísticas completas mais recentes), entre os 10 maiores emissores de CO2, decorrente da queima de combustíveis fósseis (carvão, gás natural, gasolina e gasóleo, petróleo e outros),a lista era liderada pela China (9.040 milhões de toneladas/ano), seguida dos EUA (5.000 milhões) e da Índia (2.070 milhões), seguindo-se a Rússia e o Japão, com 1.470 e 1.140 milhões, respectivamente.
Ou seja, só a China somava tantas emissões como os quatro países seguintes e o seu top-10 representava mais de 70% das emissões do planeta, onde só constava um país da UE, a Alemanha, com 1.140 milhões de toneladas/ano, no 6º lugar. Visto em modo Per Capita, a Arábia Saudita liderava, seguida da Austrália, EUA, Canadá e Coreia do Sul. Alemanha (8º lugar) e Polónia (10º) eram os representantes da UE mais destacados.
E sabia que, apesar de toda a relativamente recente trapalhada do “Dieselgate”, os volumes de emissões estavam, de facto, a baixar de nível na Europa, devido às cada vez mais evoluídas tecnologias Diesel que os diferentes construtores estavam a desenvolver e implementar? Pois é, sendo que a súbita mudança da tendência da curva, até então gradualmente descendente, se deveu a outros factores… entre os quais – vejam se adivinham…!
Dos evoluídos Diesel para a loucura SUV
Não há modo de fugir ao tema, pois por mais que tentemos relativizar o tema, os SUV estão em todo o lado e até são parte significativa do problema do renovado crescendo de emissões poluentes e dos gases de efeito de estufa, fazendo soar os alarmes entre os defensores da causa EV e, em último caso, do próprio planeta.
A curva inverteu-se devido a dois factores principais: o primeiro foi a súbita e momentânea viragem dos clientes para propostas a gasolina, afastando-se da anterior tendência de décadas, motores que, salvo raras excepções, percentualmente não evoluíram tanto quanto os seus pares Diesel neste domínio; em segundo lugar, a autêntica loucura SUV que tomou de assalto o mundo e a Europa em particular, fazendo (re)disparar os números!
Claro que os veículos com motores tradicionais poluem, sempre o fizeram, emitindo para a atmosfera largas doses de NOx e de outras partículas nocivas ao Homem e, no limite, ao planeta. Há ainda um tal de CO2, um gás completamente natural mas que tem um enorme contributo para o efeito de estufa. Um relatório da ‘Transport & Environment’ refere que, do total de emissões destes gases na vertente dos transportes dentro da UE, os automóveis ligeiros produzem 43,7 %, do bolo, os furgões comerciais mais 8,5% e os pesados mais 18,9%, ou seja, o grupo das 4 ou mais rodas somam 71,1%, pelo que se somarmos os 0,9% dos veículos de 2 rodas, atingem-se os 72%. Aviação (14%), barcos (13,4%) e comboios (0,5%) dividem o restante.
Nos automóveis, nomeadamente nos veículos de passageiros, fruto do recente e repentino shift de um mercado tendencialmente Diesel – teoricamente menos poluente, com os devidos descontos da temática “Dieselgate” – para uma preferência a gasolina, o nível de emissões reverteu a quebra gradual que revelava de há uns anos a esta parte e retomou uma assustadora viragem ascendente.
Mas há aqui outro factor a ter em conta: o salto descomunal na venda de SUV – a tal carroçaria da moda, que tem sido alvo da nossa atenção – segmento que passou de uns quase residuais 7% em 2009 para uns actuais e bem expressivos 40%! É que, a brincar a brincar, estar-se-á muito perto de quase metade do mercado automóvel!
Vários estudos demonstram que um SUV com um motor térmico emite 14% mais CO2 do que a equivalente berlina de que deriva, ou seja, se as vendas crescerem 1%, as emissões do dióxido de carbono aumentam 0,15 g/km. Desde 2013 até à data, as vendas de SUV terão representado, por isso, um adicional de 2,6 g/km de CO2, ou seja, 10 vezes superior à redução de emissões decorrente da quebra do mercado Diesel, que terá rondado uns meros 0,25 g/km. Elucidativo!
Por isso, e fruto da contínua aposta generalizada neste formato de carroçaria, para a UE são os construtores automóveis que têm de pagar a factura e, se estes quiserem minimizar os danos e manter a capacidade de resposta à procura de SUV – aqui o cliente funciona como um importante factor externo, já que é incontrolável nas suas exigências – e na máxima de que “se o cliente quer, nós damos-lhe”, têm de investir forte e feio em mecânicas EV, PHEV e afins, integrando-as nas suas propostas SUV, apontando ao objectivo de emissões zero, da tão desejada mobilidade sustentada europeia.
Um detalhe curioso em termos de emissões de CO2 nos países da UE: Portugal, país tantas vezes relegado para posições pouco favoráveis às nossas cores, até surge em lugar de destaque, ocupando um orgulhoso 2º lugar (106,3 g/km) de um pódio liderado pela Holanda (105,5) e à frente da Dinamarca (109,6). A estatística é da Associação de Construtores Automóveis Europeus (ACEA) e refere-se a carros novos de passageiros vendidos em 2018. Seguiam-se, então, a Grécia (111,1) e Espanha (112,2), os únicos abaixo da fasquia dos 113 g/km. A Alemanha é, naturalmente, a que se destaca pela negativa, registando uma média de 129 g/km).
Mas pronto, independentemente do país da UE, e em resumo, a partir do primeiro dia de 2020 há uma nova norma que obriga todos os construtores a pagar uma verba de € 95 por cada grama a mais emitida por cada veículo que venderem, que tenha emissões acima de 95 g/km. Há, contudo, uma pequena benesse, uma espécie de desconto de 5% para modelos com maiores emissões, que não entram na contabilidade do presente ano – mas em 2021 já entram – e ainda um denominado “supercrédito” por cada EV vendido (que vale por 2), aplicável na íntegra em 2020, mas gradualmente reduzido até 2023, ano em que deixa de vigorar.
Essas gramas extra e os correspondentes euros adicionais serão, depois, multiplicadas pelo número de carros vendidos em 2020 e 2021, factor que poderá levar a continha final, caso não se faça correctamente o TPC, a atingir números absurdamente elevados e dificilmente comportáveis com as finanças de alguns construtores, ultimamente habituados a vastos lucros e à distribuição de dividendos entre os seus accionistas.
Embora ninguém o tenha afirmado declaradamente, ter-se-ão definido, entretanto, directrizes para divergir a maioria das vendas de EV de 2019 para 2020, contribuindo para essa desejada redução de emissões médias da gama, ao mesmo tempo que alguns modelos com motores térmicos (nomeadamente os de maiores emissões) dificilmente se irão manter nos catálogos dos diversos mercados, já que deixa de haver um real interesse em os vender se não forem rentáveis. Vão, assim, multiplicar-se nos concessionários as desculpas de disponibilidade ou atrasos nas chegadas, canalizando-se os volumes de carros com motores térmicos para outros mercados que não sofram do “Síndrome UE/EV” e tentando-se vender ao cliente, e em alternativa, veículos eléctricos.
São exemplos os pequenos citadinos, já de si com margens de lucro mais do que esmagadas e que irão sofrer imenso com esta nova realidade (muitos deles estão a ver-se convertidos exclusivamente em propostas EV), pois a multa a pagar pelas gramas a mais que emitem não compensam o esforço financeiro necessário à sua comercialização. O mesmo se poderá passar com alguns modelos mais desportivos, essenciais em termos de imagem de marca e geradores de grandes margens de lucro, mas se calhar agora mais dispensáveis deste lado do Atlântico, conclusão idêntica que se pode aplicar aos grandes monovolumes, SUV e jipes, com emissões também mais XXL, entre outros.
Fazem-se assim contas entre os lucros que cada viatura poderá ainda gerar, entre os modelos de passageiros e os comerciais ligeiros, depois de diluídos os custos de produção e comercialização e as pesadas multas, tudo em prol da manutenção de alguma saúde financeira na vertente europeia dos diferentes grupos automóveis, quiçá compensando-se o desvio com mexidas nos volumes e nos preços praticados nos demais continentes. Voltar à fase de recessão que alguns deles atravessaram recentemente é que ninguém quer, pois os accionistas não ficariam nada contentes com isso!
Para tal, têm-se multiplicado, ao longo dos últimos tempos, inúmeras reuniões entre os pares de cada grupo automóvel que, cozinhando-se nas suas casas a melhor estratégia possível, adequando-se os modelos e as marcas para se dividir o mal pelas aldeias (ex.: grupos VW, PSA, Renault/Nissan, BMW/Mini, etc). Outras estabeleceram alianças mais ou menos repentinas, formadas para se diluir custos, já que é preferível pagar-se a ajuda do vizinho do que uma pesada multa à UE. São exemplos a associação da Mazda à Toyota ou da Fiat Chrysler Automobiles (que, entretanto, ficou em processo de fusão com o Groupe PSA) à Tesla.
Já vai longo este mini-dossier “95 g/km de CO2”, mais parecendo aquela máxima popular de que as conversas – neste caso, o presente tema – são como as cerejas, em que puxamos uma, e logo atrás vem outra, encadeando-se as várias vertentes que vão fluindo de uma forma natural. Mas há ainda outras coisas em jogo, associadas a isto tudo, num poço que parece não ter fundo… Não perca, por isso, o próximo capítulo!