Africa Eco Race: No espírito de Thierry Sabine
Aos mais atentos com a temática do todo-o-terreno internacional há um facto que não lhes deverá ter passado despercebido: não houve “Africa Eco Race 2021”, evento maratona que, nos anteriores 12 anos, decorre quase em simultâneo com o “Dakar”. A que deveria ter sido a 13ª edição viu-se cancelada pelo impacto da COVID-19, pela impossibilidade de se transporem fronteiras, mas a edição nº 14 está já a ser preparada, com vista a melhores dias, voltando a assentar arraiais no deserto de 4 a 16 de Janeiro do próximo ano!
Trata-se de um evento em muito idêntico aos “Dakar” originais e que, apesar de ainda ter um menor impacto mediático, tem sido mais acessível em termos de custos de participação, pelo que vários os pilotos e marcas, nas suas diferentes vertentes, têm apostado nesta nova maratona africana, quiçá preparando-se para um eventual regresso às origens do evento original.
É sabido que, embora mantendo a denominação “Dakar”, que entretanto se tornou num trademark, a prova da Amaury Sport Organisation tem, andado por outras paragens – primeiro a América do Sul e a Arábia Saudita nas últimas duas edições – deixando para trás a capital do Senegal. Recorde-se que a tripla Lago Rosa / Dakar / Senegal marcou o final de nada menos do que 25 edições da maratona idealizada por Thierry Sabine, ponto no mapa que também foi partida da prova do ano 2000 – foi um “Dakar/Paris” e não um “Paris/Dakar” – e intermédio noutra, quando a maratona de 1994 teve partida e chegada na capital francesa, vendo-se dividida por um dia de descanso na capital senegalesa.
Homenagem ao aventureiro que um dia se perdeu no deserto
Mas regressemos à “Africa Eco Race”, o tema central desta nova prosa de motorsport da Garagem que, sob o claim “Sous les traces de Thierry Sabine!”, é vista como a actual verdadeira homenagem a esse aventureiro que, um dia, depois de se ter perdido no deserto numa travessia de moto, mas depois encontrado in extremis e às portas da morte, teve uma epifania: preparar uma jornada de resistência que atravessasse os desertos do nordeste do “Continente Negro”.
Sabine passaria, a partir de então, a dedicar-se, de corpo e alma, ao seu então “Paris/Dakar”, abraçando-o até ao dia em que morreu, durante a edição de 1986, após queda do helicóptero onde seguia com mais quatro companheiros dessa negra viagem. As suas cinzas foram depois depositadas junto à hoje “Árvore Thierry Sabine”, singular elemento da natureza de esquelético visual retorcido e ressequido que teima em manter-se vivo em pleno deserto do Ténéré, no Níger, e que desde então ficou imbuído da alma do aventureiro francês. Entre as suas frases chave destacam-se “Um desafio para quem lá vai; um sonho para os que ficam para trás”.
Mantendo uma génese mais ou menos idêntica ao longo de todas as suas edições, a “Africa Eco Race” tem atravessado Marrocos, Mauritânia e Senegal, terminando em Dakar, tendo apenas variado no seu local de partida. Na primeira edição (2009) saiu-se de Marselha e, na segunda, de Portimão, no Algarve, entrando-se em África por Agadir (Marrocos). Seguiu-se Châteaux de Lastours (França), com desembarque em Nador (Marrocos), e quatro edições com partida em Saint-Cyprien, região francesa dos Pirenéus. Em 2016 o ponto de concentração de concorrentes passou a ser o Principado do Mónaco, local que se manteve até à edição de 2020, a 12ª do este ano interrompido historial da prova.
Em termos de marcas oficialmente envolvidas, a representação não deixa de ser significativa, com planteis compostos por marcas como a Mini e a Toyota, os portentosos buggies Schlesser e inúmeros outros aranhiços, mais os pesos-pesados da DAF, IVECO, Kamaz, MAN e Tatra, sendo luta pelas duas rodas uma luta tripartida entre as propostas da Honda, KTM e Yamaha.
Entre os hinos dos vencedores já se ouviram os acordes d’ “A Portuguesa”
No domínio dos vencedores é, também francês, o que mais vezes subiu ao lugar mais alto do pódio, de seu nome Jean-Louis Schlesser, conquistando 6 das 12 possíveis vitórias na categoria “Autos”, ele que, presentemente, passou para o outro lado da barricada, estando agora como organizador do evento. Bem mais equilibrado é o domínio nas “Motos”, pois até à data apenas um piloto bisou, feito do norueguês Pal Anders Ullevalseter (2015 e 2016). Nos “Camiões” a divisão faz-se com 3 vitórias para o checo Tomáš Tomeček e outras tantas para o russo Anton Shibalov, categoria em que a portuguesa Elisabete Jacinto também já fez ecoar nos desertos as notas d’ “A Portuguesa”, fruto da conquista da vitória na edição de 2019, ela que participou em 11 das 12 edições da “Africa Eco Race”, ali acumulando um importante conjunto de resultados.
Quanto às restantes operações lusas, divididas pelas restantes categorias em competição, a presença na prova de representantes nacionais tem sido quase residual, sendo esporádicas as participações desta ou daquela equipa. Ainda assim destaca-se a dupla subida ao pódio das Motos de Luis Oliveira (2º lugar, Proto) e Rui Oliveira (3º, Yamaha) na edição de 2018, palanque a que, entre os Autos, ainda nenhum português almejou alcançar, sendo o 9º lugar de Paulo Ferreira/Jorge Monteiro (Nissan) em 2013 a melhor prestação até à data.
A título de referência, na última edição efectivamente disputada, a de 2020, a comitiva lusa resumiu-se a um participante nas duas rodas e uma dupla nas quatro, tendo qualquer deles experimentado uma verdadeira travessia no deserto, fruto dos inúmeros problemas e dificuldades registadas ao longo dos cerca de 6.500 km, divididos, terminando bem abaixo das suas reais possibilidades e objectivos inicialmente definidos.
Aos comandos de uma KTM, João Rolo apenas foi 64º, após bastantes problemas, enquanto a dupla Fernando e Nuno Barreiros, em pick-up Isuzu D-MAX, alcançou o 3º lugar da Categoria T2 (veículos de Produção) e o 2º da Classe T2 Diesel, se bem terminando bem abaixo em termos de geral (47º lugar). Após o arranque do lendário circuito de F1 do Mónaco, a caravana do “Africa Eco Race 2020” seguiu para Savora (Itália) e daqui para Tânger (Marrocos), antecipando as 12 Etapas competitivas, divididas por um dia de descanso, na praia de Dakhla. Sublinhe-se, também, o caracter ecológico desta maratona africana – razão da referência “Eco” na sua denominação – com a montagem dos bivouacs no meio do nada, longe das zonas habitacionais e em plena comunhão natureza, promovendo-se o convívio entre os participantes e promovendo-se o uso de materiais recicláveis e a plantação de árvores.
“O único e verdadeiro Dakar é em África e termina em Dakar”
Para 2022 espera-se o desejado regresso da “Africa Eco Race”, 13ª edição que, como se disse na introdução, está já agendada de 4 a 16 de Janeiro. Aos participantes espera-os uma maratona tradicional de 12 etapas e cerca de 6.500 km, com partida no Mónaco, entrada em África por Marrocos, entrada no deserto da Mauritânia e etapa final nas praias do icónico Lago Rosa de Dakar. Um dos lemas da organização não poderia ser outro: “The only real Dakar is in Africa and ends in Dakar”.
A título de aperitivo, a organização tem em mente realizar uma mini-maratona de 7 dias, a ter lugar durante a primeira quinzena de Outubro, compreendendo apenas 5 Etapas e num local ainda por desvendar. Aguardemos, portanto, novos desenvolvimentos neste capítulo, sendo necessária uma diminuição do impacto da pandemia – que nessa altura espera-se já esteja num patamar bem mais débil, permitindo as necessárias viagens de ida e volta ao país que entretanto está a ser escolhido quase no segredo dos deuses dos desertos.
O mesmo é válido para o evento maior “Africa Eco Race”, de Janeiro de 2022, prova que poderá representar um reforço do contingente luso que se poderá apresentar à partida, assim existam orçamentos para tal. Ou seja, um futuro a quase um ano ainda praticamente desconhecido de todos… afinal ainda faltam 324 dias!
Fotos: AIFA/Jorge Cunha; Africa Eco Race; TSO